Crônica

As viúvas do Zico

Eu odeio o Flamengo.

Minha avó se estivesse viva ralharia comigo. “O que é isso, menino? Primeira linha do seu livro com uma palavra tão feia?” Pois é. Acho que você vai concordar comigo sobre tanto ódio em meu pobre coraçãozinho depois de ler essa breve história do Clube de Regatas Flamengo. Não faltam razões para tanta amargura e mágoa. Lançarei nessas páginas lamentos e mais lamentos porque, de verdade, não é fácil ser torcedor do rubro-negro.

Mas pera aí, cara! Você está falando do time de maior torcida do Brasil, quem sabe, do mundo. Eu sei disso. Mesmo assim, dói no peito pacas acompanhá-lo. O último exemplo disso foi em 3 de julho de 2016. Partida pelo Campeonato Brasileiro. O Flamengo ganha, perde, demite técnico, confirma interino, porém, nessa temporada a equipe se mantém entre os sete, oito melhores. Então, jogo contra o Corinthians em São Paulo no estádio de Itaquera, construído pra Copa do Mundo de 2014 e que eu não conhecia ainda. Ótimo programa para uma tarde de domingo. Ah, esqueci de dizer que sou flamenguista, mas nunca morei no Rio de Janeiro. Quase sempre vivi na cidade de São Paulo, longos 400 quilômetros do mágico Maracanã. Mas só vou falar disso mais adiante, voltemos ao clássico do povo.

Por causa do Mundial, pulularam pelo país as tão famosas Arenas. Não se fala mais estádio de futebol, a modinha agora é Arena disso, Arena daquilo. Tá, ok, que seja. Tudo mudou, o Maracanã mudou, virou outra coisa. E até o jeito de se comprar ingressos também se transformou significativamente. Por isso, adiei ao máximo a compra da minha entrada para esse Flamengo e Corinthians em Sampa. Em outros tempos, quando havia o carinho (será?) de um pai, o Mengão em São Paulo era certeza da minha presença no lugar, era importante, era um evento imperdível, eu tinha que estar lá. Agora, com pouco mais de 40 e sem ingenuidade nenhuma simplesmente desencanei do estádio. Quando a manhã de domingo chegou, não tinha ingresso nas mãos e já havia a certeza de que ahhhh, não vou sair de casa pra ver esse time não, vai passar na televisão.

Seu traidor! Claro que você dirá isso. Mas se ponha no meu lugar. Sou torcedor, mas mas… Enfim… o jogo começa um minuto antes do tempo e o Mengo dirigido por Zé Ricardo, ótimo técnico da base que foi lançado aos lobos, me surpreende. De verdade. Na mesma hora, em outro canal, a França jogava contra a Islândia pelas quartas de final da Eurocopa e quase me lancei nessa empreitada. Mas porra, o Flamengo dava um baile no Corinthians. William Arão, Ederson e até mesmo Pablo Guerrero deixavam os corintianos respirando com dificuldade. Termina o primeiro tempo e meu time está bem demais.

Poxa, eu tinha que desconfiar.

Quando o jogo recomeça, Arão perde um gol impressionante. Minutos depois, o mesmo Arão falha na marcação depois de uma cobrança de escanteio. Sem merecer, gol do Timão. Outros minutos, nova bobeada rubro-negra, e a porteira é aberta de vez. Corinthians faz dois, três, quatro gols e eu me afundo no sofá e a primeira coisa que penso depois de dizer merda várias vezes “que bom que não gastei dinheiro com isso”. No entanto, eu queria ter dito, “mas tudo estava indo tão bem…” Sentiu? Essa tem sido minha vida nas últimas três décadas. Sofrimentos e vergonhas de todos os níveis. Cabañas? Atlético Mineiro na Copa do Brasil? Pior ataque do mundo? Quase rebaixamento em um monte de temporadas? Um ou outro motivo de alegria, quase nunca. E dessa sensação de tragédias e vergonhas nasceu a certeza de que precisava contar essa história. A história das viúvas de Zico. A história do time que nunca mais foi o mesmo depois da aposentadoria de seu maior ídolo. A história de um gigante que se apequenou…

Ah, mas o Nick Hornby fez isso com o Arsenal!!! Eu sei. Li essa pequena obra-prima em 2001. Não pretendo ler novamente enquanto fizer esse livro. É claro que me serviu de inspiração. Não sejamos hipócritas. Porém, a história é outra, o time é outro, minha vida é outra. Relaxa aí na sua cadeirinha e não começa a reclamar. Deixa que eu farei isso quase que o tempo todo… afinal…

Eu amo o Flamengo…

Crônica · Ensaio fotográfico

Gol da Alemanha

DSC_0036Todo mundo lembra onde estava quando o homem desceu na lua. O mesmo serve para o 11 de setembro. A morte de Senna também. São exemplos de fatos marcantes que extrapolaram seu universo, seu nicho, e transbordaram para a vida cotidiana das ditas pessoas normais. Eu, você, ele, enfim. Pra muita gente é difícil perceber, por causa da falta de distanciamento temporal, o fato histórico se desenhando na sua frente. Realmente, não é simples entender que aquilo que conhecíamos não é mais aquilo que, bom, conhecíamos. Tragédias, mudanças sem aviso prévio, tiram o seu chão. Para os que amam futebol, o 8 de julho de 2014 ganhou sua aura de inesquecível num padrão do nível da queda do Muro de Berlim (sim, parece exagero, mas não é não). Não? Vou dar uma dica (ou duas): o 7 a 1? Gol da Alemanha? Pois é, o futebol brasileiro tem seu Waterloo. Você lembra o que sentiu naquela tarde?

Tenho que confessar que muitas vezes torço contra a seleção brasileira. Foi assim em 2010 na Copa do Dunga. Tem sido agora também. Vibrei contra os times de Zagallo, Parreira e até Luxemburgo. Rancoroso, sei bem. Sou, entre outras coisas, uma viúva do time de 1982, aquele do meio campo formado por Falcão, Sócrates e Zico. Putz grila, você tem noção do que foi aquela equipe? Se tem, então, entende como me sinto em relação aos escretes canarinhos que vieram depois. A comparação é cruel. Agora, sempre tive simpatia por Luiz Felipe Scolari. Tive a chance de entrevistá-lo duas vezes antes da Copa de 2002, a Copa do Penta. Fiz perguntas complicadas e ele não virou os olhos nenhuma vez e ainda fez graça quando respondia. Pouco passional eu, torci por Scolari no Mundial do Japão e da Coreia. O título veio e o tempo passou. Então, chegou a Copa do Mundo do Brasil em 2014.

Scolari substituiu Mano Menezes (que eu gostava), quando finalmente o time do treinador demitido engrenava. Aliás, a saída de Mano pegou todo mundo de surpresa. Agora, a seleção de 2014 estaria sob comando de Felipão e, nas sombras, Carlos Alberto Parreira. Por mais carinho que tivesse por Scolari, difícil engolir as pataquadas de Parreira. Aí, a Copa começou. Neymar era o único talento de um grupo nada mais do que esforçado. Claro, todo mundo que quisesse ver essa verdade, viria. Mas a pachecada entrou naquele esquema do ame-o ou deixe-o (que enche pacas o saco)… eu deixei a seleção de novo. Mas gosto (amo?) futebol e fui ver tudo da Copa do Mundo.

Via Messi se desdobrando pra levar a Argentina nas costas. O Chile vencendo um dos grupos da morte. Itália e Inglaterra dando novos vexames. A Espanha, até aí a campeã do mundo, numa participação frustrante. E tinha o time do Felipão, a duras penas, passando pela Croácia (lembra do apito amigo do japonês), empatando com o México, derrotando um ultrapassado Camarões. Na sequência, dois clássicos sul-americanos. A quase eliminação contra o Chile e depois (talvez único bom jogo do Brasil) a vitória sobre a Colômbia, que trouxe na bagagem o fim do Mundial para Neymar depois da entrada dura de Zuniga. Nada de especial, na verdade. A choradeira dos boleiros amarelos na hora do hino chamou mais a atenção do que boas partidas de fato. Que venham as semifinais.

O Brasil, suando por demais, ao lado de Holanda, Argentina e Alemanha – que havia apresentado um melhor conjunto mas sofreu como nunca nas mãos da Argélia nas oitavas-de-final. Não esqueça também que os alemães acabaram virando o segundo time de todo mundo tamanha a simpatia que exalaram em terras tropicais.

Sem Neymar, a seleção enfrentaria o melhor time do Mundial de olho na final. Felipão surpreendeu todo mundo escalando o franzino Bernard para encarar os gigantes germânicos. Seleção brasileira, sim senhor, jogando pra frente. Não posso dizer que fiquei triste com esse arrojo do nada do treinador tupiniquim. Mas, e nesse história sempre tem um mas, o problema é que o Brasil não tinha time para encarar ninguém, não tinha meio campo, a defesa era uma festa e o coitado do Fred, bom, era só um coitado lá na frente. Deficiências claras e evidentes apresentadas há tempos.

O jogo começa e não podemos dizer que os dez primeiros minutos foram ruins. Foram não. As coisas até que caminhavam bem para os comandados de Felipão. Bernard, outro coitado, parecia uma criança no meio do jogo de adultos, porém o Brasil encarava a Alemanha. Então, aos 11, um escanteio e a casa caiu. É importante lembrar que Muller apareceu sozinho na área. Só deu um totozinho e rede. Ninguém para marcá-lo. Ok, meninos, então vamos acordar e continuar a peleja. Como disse, eram só meninos, nada mais do que isso. Não havia um líder em campo, nem fora dele. Quando o 23º minuto aportou no relógio, a seleção amarela desandou de vez. Levou quatro gols em pouco mais de 300 segundos. E o resto virou história.

Eu estava chocado vendo tudo aquilo. Uma sensação maluca de não estar vendo aquilo. Não era real. Porque ali dentro do campo ninguém de amarelo corria ou fazia algo ou quebrava alguém ou ia pra porrada e nada acontecia além de gol da Alemanha, gol da Alemanha, gol da Alemanha. Pesadelo para quem assistia ou um certo torpor ou as duas coisas. Mesmo sendo da torcida do contra, jamais imaginara que algo assim pudesse acontecer com o outrora melhor futebol do mundo. Eu sabia há algumas décadas que o Brasil não era mais o dono da cocada. Era só mais um. Mas dói quando aquele seu amor mais antigo é maltratado, humilhado, pisado. Eu ria de nervoso, não era real. Gol da Alemanha. O primeiro tempo acabou, 5 a 0 pra eles.

Devo ter ido tomar café, meu vício mais querido. Voltei pro meu canto do sofá. O intervalo passou letárgico. As imagens dos torcedores incrédulos, muita gente indo embora do estádio (o que não acho certo porque se é pra torcer, torce até o final e ponto). De verdade, já imaginava coisas piores do tipo vira 5 acaba dez. Claramente, no entanto, quando os alemães voltaram ao jogo, o fizeram num ritmo mais lento. Não fariam mais nada para nos humilhar. Não avisaram pro tal do Schurle que ainda marcou mais dois gols. Vexame escrito e nem o gol do Oscar aliviou muita coisa. 7 a 1. Não chorei nem nada. Atônito e com a garganta seca e um pouco envergonhado. Maior goleada já sofrida na história da seleção brasileira. Acho que só isso já basta como epitáfio. A maior humilhação já sofrida pelo time brasileiro em seus 100 anos de história. Nada havia sido pior do que aquilo.

O juiz apitou o fim do jogo e senti que poderia acordar a qualquer momento com aquela sensação de que havia tido um sonho muito ruim. Quando acordasse, tudo seria melhor. Pois é, amiguinho, foi não. Como um crítico do status quo da sociedade humana acreditei (ingênuo coitado) que a vergonhosa derrota serviria como o marco zero de uma nova realidade. Aqueles que faziam mal para o nosso futebol (um bem cultural, sim senhor) seriam limados da face da terra, gente séria assumiria o comando e hoje, um ano depois, estaríamos ainda lambendo as feridas, mas com uma perspectiva diferente.

Claro, nada disso aconteceu. Mandaram o Felipão pra China e trouxeram de volta o Dunga. A Copa América que acabou no último sábado foi a prova de que não aprendemos nada com os 7 a 1. A arrogância, incompetência, cegueira global seguem mais fortes do que nunca. E me levam a uma leve sensação de que precisaremos de outras humilhações, como não se classificar para uma Copa do Mundo, por exemplo, o que nunca esteve tão próximo como agora… Mas relaxa, meu pai dizia que eu era pessimista. Devo estar exagerando (o que de fato estou sendo é sarcástico). Sei não, sei não, a luz que aparece no fim do túnel é um belíssimo de um trem sem freio vindo em nossa direção. Que pena.

Atividade escolar · Crônica

Além das palavras jogadas no papel

Leio nos jornais e não entendo nada. Poderia procurar respostas em revistas, livros, discos, internet, mas não. Eu não entendo nada mesmo. Vejo apenas que o Brasil (ou Brazil?) de Cazuza não mostrou sua cara. Os mendigos de Drummond mudam de viadutos como mudam de casa. O circo de Portinari é triste, sem o vermelho, o azul e o amarelo. E o Pink? Os namorados de Almeida choram quietinhos para não acordar o mundo. Eu tento entender…

Quero dizer que não há o que compreender nesse mundo. Não sou pessimista. Há tempos tirei a pedra do meio do caminho e busquei cores  quentes na paisagem fria. Mesmo assim, folheio tudo o que me chega e nada encontro. Sou eu o problema, então?

Vácuo. Silêncio. Queremos agora escutar o que aquele homem lê em voz alta. Ele diz que o mundo divide-se em dois: de um lado, aqueles que querem mudar. De outro, aqueles que já viram (leram) tudo, desistiram e não encontram motivos para continuar. Assunto difícil. O capataz de Portinari queria mudar? Os trabalhadores do cafezal não encontram mais motivos para continuar?

E pelas estradas silenciosas de Almeida…

Que ela venha ao menos num domingo de sol!

Comodidade, tecnologia, desenvolvimento. Socorro!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Tudo muito fácil. Na mão. Sem conhecimento, esforço e prazer.

Pessoas felizes, cheias de esperança, na triste alegria de viver nesse mundo.

Aí lembro da pedra no meio do caminho (como esquecê-la?)

Assobio sem pretensão alguma: “Me diz, me diz, como ser feliz em outro lugar?”

O mundo não me deixa entendê-lo. Tento, de novo. Será que o problema está na forma como eu leio? Estou lendo errado? Acho que não. B + A = BA. P + E = PE. Estou lendo certo, as sílabas se formam, se juntam e tentam dizer alguma coisa naquele pedaço de papel. Será uma armadilha do mundo não compreendê-lo? Pode ser. Não há como contestar o que não se entende.

Ah, agora entendi. Leio, releio. A tarefa parece difícil e é. Procuro outros olhos para vislumbrar o que a maioria dos brasileiros não vê. Queremos ser primeiro mundo, mas o menino da favela nunca leu um livro. O operário também não. O empresário? O que falar daquele político? Pra ele, literatura é auto-ajuda. Nada mais. Sim, compreendo agora a tristeza (disfarçada de alegria?) nas carinhas das crianças de Portinari. Crianças brincando sem o vermelho, azul e o amarelo. O branco? E o pink?

EXPLICAÇÃO: Projeto promovido pela Nestlé nos anos de 2004 e 2005. Eu coordenei os trabalhos com as turmas do nono ano no Externato São Judas na ocasião. No caso desse texto, partíamos a produção dele da leitura de obras de Portinari, Drummond, Guilherme de Almeida, Cazuza. Interessante perceber, mesmo quase dez anos depois, como o texto é atual… Dureza viver nesse Brasil, dureza…

Crônica · Reportagem

Natal sem o filho

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A placa no portão avisa: cão bravo. O toque na campainha confirma. A cachorrada faz uma sinfonia, chama a atenção do dono, protege a casa de um possível invasor. São bravos mesmo. Por instantes, Timoteo Salazar Marin, de 35 anos, pensa que seu presente de Natal pode estar à porta. Logo, a esperança se desfaz. “Os cachorros esperam por ele. Era sempre assim. Dava o horário de José chegar da escola e eles ficavam agitados, no portão, latindo. José cuidava deles, brincava. Comprei esses dois cachorros porque José era muito sozinho. Se davam muito bem”, lembra o pai que convive com uma espécie de mistério há quatro meses desde quando seu único filho José Luiz Salazar Morales, de 14 anos, fugiu de casa. “Só quero que ele ligue pra mim”, desabafa.

TImoteo é um imigrante boliviano. Está no Brasil há oito anos. Ressalta que está de forma legal no Brasil e não pretende tão cedo voltar à sua terra natal “Lá eu era motorista e o dinheiro não valia nada”. Costureiro, casado pela segunda vez, ele trouxe seu filho da Bolívia em 2009. Até então, o menino era criado pela avó. A mãe o deixou quando era ainda um bebê. A família vive na zona norte de São Paulo. José estava na sétima série de uma escola pública e talvez, para Timoteo, essa tenha sido a razão para o desaparecimento do garoto. “Ele não queria mais estudar. Queria trabalhar. Eu dizia com força que só queria que  estudasse, que levasse a sério senão ia apanhar. José se apaixonou por uma menina, eu não deixei namorar. Mas, ele sumiu sozinho. A menina não foi. Não sei…” disse o pai, olhando desolado para um ponto qualquer. “Ele tinha medo de mim, muito medo…”

Num sábado de setembro, ao voltar da Feira da Madrugada, que acontece no centro de São Paulo, Timoteo não encontrou o filho, apenas um bilhete que dizia que o menino chegaria à Bolívia de bicicleta. Nada mais. Desesperado, o boliviano partiu para a Rodovia Castelo Branco. Circulou por cinco horas, sentido Mato Grosso, para encontrar o adolescente. Nada. Deixou fotos nos postos policiais, voltou para casa, foi à delegacia. “Mandaram eu esperar… estou esperando”. Em seu bilhete, José não dizia claramente a razão de sua fuga. O mistério só cresceu, quando em novembro, num sábado também, o garoto ligou para a avó que ainda vive na Bolívia. Disse que estava trabalhando com bolivianos, estava “fazendo” dinheiro para poder chegar em seu país. Comentou ainda que havia quebrado a mão depois de uma queda de uma escada, sem maiores detalhes. Sobre o pai? Afirmou que Timoteo jamais o perdoaria. Po  quê? Pois é, Timoteo não faz a mínima idéia. A ligação para a Bolívia se repetiu nos sábados seguintes.

Como era José? Estava envolvido com drogas? Era violento? “Meu filho era tranqüilo, não tinha nada disso não. Pelo menos é o que eu via. Ele não queria mais estudar, não sei se isso é uma razão pra fugir de casa”. Seria o filho vítima de bullying no colégio? Os meninos bolivianos têm sido alvo de violência nas escolas da cidade de São Paulo nos últimos anos, os casos já se contam a dezenas. Por quê? Por serem bolivianos. Timoteo foi à escola esse ano justamente por causa disso. José teria sido agredido por meninos. O pai conversou com as crianças, com a diretora. “Quando eu perguntava pra ele se estava tudo bem no colégio, ele dizia que sim. Agora não sei se estava mentindo. Eu deveria ter prestado mais atenção”

Desconcertado, o pai fala baixo, não entende de fato o que se passa, tem medo apenas. “Eu ameaçava de bater se não estudasse como todos os pais fazem, o meu fazia isso. Mas eu nunca toquei um dedo nele. Eu sei que trabalhava demais, que não o controlava direito, que talvez não fosse tão presente quanto eu imaginava. Eu falhei!”, aponta mais desolado ainda com um sorriso nervoso no canto da boca. José fugiu somente  com o documento de identidade da Bolívia. Em suas ligações para a avó não mencionou que voltaria para o pai. O que de fato aconteceu com José? Timoteo não sabe responder. “Eu o quero de volta. Não haverá castigo, surra, nada. Só quero entender. Precisamos conversar mais, preciso conhecer meu único filho…” e as palavras se perdem com o latido agudo dos cães. “Será José no portão?” Não, não desta vez…

Crônica

Uma noite…

Nascemos, vivemos e morremos…

Essa é a única certeza durante toda a nossa existência. Lição simples, de fácil aprendizagem e que nunca nos é ensinada. Vivemos – ou quase todos vivem – com medo da morte, consequentemente, medo de viver. Se aprendêssemos essa lição simples desde o início, passaríamos desde pequenos a apreciar o agora, o presente, aquilo que está acontecendo. Não viveríamos para o futuro, formulando projetos que nada mais são do que projetos, não olharíamos para o amanhã. E por que digo isso?

Porque esse é um agora que vale muito ser vivido intensamente. Esse agora no qual estamos presentes, vivenciando, curtindo nessa noite é daqueles instantes que ficam para sempre, que nos deixam marcas, são gostosos de serem lembrados. Se tivéssemos aprendido na escola a apreciar esses segundos, minutos no exato momento em que ocorrem pode ter certeza que encontraríamos com facilidade o caminho da tal felicidade, felicidade que não deveria ser um projeto pra amanhã e sim algo a ser sentido agora…

Nossos meninos cresceram. Talvez, chamá-los de meninos seja um exagero carinhoso, mas tenho tendência a exageros sempre. Foram tantos ao longo desses mais de sete anos de convivência. Renata, Luis Roberto, Vinícius, Lucas, Bruna, Kaíque, Karina, que eu tornaria presidenta do Brasil se não tivesse nos deixado no meio do caminho. Há tantos… E há os que ficaram até o fim. O quarteto de moços que deu tanto trabalho, mas tanto trabalho… Chegava na sala, cadê os meninos? Diretoria, professor! Vários de meus cabelos brancos têm seus nomes, mas não posso dizer que não tenha me divertido um bocado.

Já as meninas, tantos grupinhos, briguinhas, mas no fim, e que bom isso, tudo terminou bem. Ana, Letícia, Bruna, Tabatha, Stephanie, Rafaela, Raquel, Natália Costa e Nathália Torres trilharão caminhos distintos, mas sei que graça e talento não faltarão a nenhuma delas nesse contato com o mundão… Me orgulho do tempo em que passamos juntos…

Enfim, aproveitemos o agora, estejamos felizes, missão cumprida… sobre o amanhã, não sei, ninguém sabe, talvez não importe de fato… mas agora sim, sorria, agora, está tudo bem!

Crônica

Som do ambiente

Som conhecido. Terminava meu trabalho. A música me chamava a atenção. Segui. Músico colombiano, conversa trivial, nem lembrei de perguntar o nome. Pedi um retrato. Ele deu. Deixei dois reais. Não precisava, ele disse. Canção boa merece. Poderia ter ficado mais. Poderia ter ouvido mais. Fui adiante. A melodia conhecida. Isso é um bom dia, pensei…

 

 

Crônica

Leonardo

Menino perdido, largado no chão,

Desde cedo bandido, pediu nascer não

É bala da Polícia

É bala do Ladrão

Menino perdido, brinca de botão,

Roda, capoeira, pé no chão,

Cabeça no mundo da lua,

Como o pai que nunca viu e tá na prisão,

Menino, moleque, cansado de guerra,

Deita no colo dela

Viajar pelo mundão,

perdeu-se no meio da favela

Queria sair, partir, fugir, por que não?

Menino tinhoso, medo tem não, viver ele quer

Amar ele quer

Bala da Polícia, Bala do ladrão

É tudo igual, diferença tem não

Que pena…

Menino, quer voar, tirar os pés do chão

Vento bateu forte, as ondas da praia num vai e vão…

Menino pergunta pro pai… Posso voar?

Pai fecha os olhos, pensa muito não, diz, vai…

Menino foi…  olhos azuis da cor do mar,

Perdido, não tá mais não,

onda vai e vem,

Dança de salão…

Não tem mais bala de polícia,

não tem mais bala de ladrão…

 

Crônica

Freud

O sonho foi assim. Havia uma grande mesa e era claro pra mim que pessoas estavam jantando, mas mais do que isso, era uma espécie de celebração. Fui logo perceber que na verdade se tratava de uma despedida. Na cabeceira dessa grande mesa, uma mulher. Uma senhora com fáceis 90 anos de idade, cada um deles identificado no rosto, no corpo, na testa avantajada e nos longos e ralos cabelos brancos amarrados num rabo de cavalo. Ela parecia a Nicole Kidman, fazia lembrar ao menos. Ela diz coisas para as pessoas. Não consigo ouvir. Aí então finalmente me faço presente nessa história. Meu peito dói tanto ali que parece que vai explodir de verdade. Digo: “Eu vou perder você de novo!” Abraço a velhinha com força, sinto seu corpo fraco, seus ossos saltando da vida, beijo a velhinha que agora não é mais velhinha. Acordo com o coração acelerado e uma puta tristeza do tipo sozinho de novo ou pior perdi de novo ou quem sabe as duas coisas juntas ao mesmo tempo agora.