Contos

A família

Não tenha pena de mim. Sou totalmente responsável pelos meus atos e fiz o que fiz porque quis. Estava enfastiada, irritada, sem saída. Então abri a caixa e deixei saírem todos os demônios. Confesso apenas que me assustei por um ou dois segundos quando percebi que eu era a irmã do meu irmão. Eu era como ele.

15 anos antes…

Quando nasci, Igor já tinha seis anos. Claro que não lembro disso, mas a primeira coisa que ele fez ao me ver foi arremessar um molho de chaves que acertaram a cara de minha avó (para a minha sorte e azar dela). Ouvi minha mãe contando essa história para uma amiga. Eu crescia e sempre ao lado de Igor, as ofensas e agressões se avolumavam. Não havia por parte dele – e disso me recordo – nenhum desejo de cuidar de mim, de ser bom pra mim. Quando fiz cinco, ganhei uma boneca linda. Ela vinha com duas roupas. Eu até chorei de emoção rasgando a embalagem cor de rosa com o nome da loja. Igor não estava em casa naquele dia. Teve a boneca, bolo e brigadeiro e um monte de amiguinhos da escola. Usava um vestidinho azul escuro e uma tiara que combinava com os sapatos. Todos foram embora, meu irmão chegou. Ele não sabia de meu aniversário e estranhou aquele ar de festa que preenchia cada sombrio canto de nossa casa. Eu havia esquecido a porta de meu quarto aberta e ficou fácil para o Igor. Ele viu os presentes, o vestido novo e a minha primeira boneca – toda linda. Demorei para perceber que Igor estava em casa. Só quando ouvi o estridente barulho de alegria de sua risada demoníaca que corri para o meu quarto. Lá, numa pequena fogueira, derretia minha boneca, queimava meu vestido, tudo. A fumaça preta tomava conta do lugar e Igor ria, ria, ria.

Paralisada de medo (seria tristeza?) via todo o meu mundinho se desfazer. E não entendia minha culpa nisso tudo.

Aos 15, papai e mamãe saíram de casa para espairecer. Me deixaram sozinha com Igor. Eu ainda sonsa, pouco entendia das razões que levavam meu irmão tanto me odiar, me castigar, me punir. Antes de entrar no carro, mamãe gritou da calçada “seu remédio tá em cima da pia, Igor!” Meu irmão não estava resfriado. Tranquei a porta de meu quarto, deitei na cama e lá fiquei horas, dormi e fui capturada dos braços de Morpheus graças aos gritos terríveis que vinham do quintal. Meu coração acelerado de um jeito que nunca ficara e aquele grito, aquele grito, meu deus, aquele grito. Mesmo aflita corri para o quintal, o dia já tinha ido e o quintal não era dos lugares mais convidativos da minha casa durante a noite. Mesmo assim, fui… fui sabendo que algo meu irmão fizera e que isso marcaria de vez toda a nossa família.

Encostado no muro, Igor fazia desenhos abstratos usando o sangue da filha da vizinha como tinta. Tanto sangue. Ela tinha só sete anos. Igor jogou pra longe o pequeno corpo, olhou pra mim com tanta fúria “agora é tua vez, sua vadia!” Corri, mas não consegui sair do lugar. Um soco me acertou o olho direito, outro meu estômago e desabei feliz sabendo que não estaria acordada dali a um segundo porque o pior ainda aconteceria. E aconteceu. Meus pais voltaram no dia seguinte, encontraram o corpo da filha da vizinha, eu ainda deitada de bruços exausta, sem forças no quintal, toda quebrada em todos os sentidos. Igor na sala banhado em vermelho sangue assistia futebol na sala, indignado com o “juiz filho da puta que só rouba contra meu time!”

Um grave transtorno de personalidade, disseram sobre ele.

Minha volta para casa depois de anos coincidiu com uma breve saída do manicômio para Igor. Ele passaria os feriados de fim de ano em casa. Parecia outro quando entrou pela porta de casa. Abraçou papai, beijou mamãe que chorava emocionada. Ao se aproximar de mim, disse aos prantos “não era eu, me perdoe, me perdoe, agora estou curado!” me abraçou.

Eu nada falei e apenas esperei as luzes de toda casa serem desligadas. Estava na cozinha olhando o vazio da minha vida e o quanto dela (a minha vida) havia restado depois de 15 anos vivendo com Igor e pais que não me protegeram. Percebi que a minha vida não existia mais e que eu era apenas um resto, um nada, um fantasma daquela menina que queria ser médica. Eu agora não era nada e abri a caixa e deixei saírem todos os demônios.

Gaveta da pia aberta. Uma faca grande, afiada. O fim desenhado na minha cabeça. Subi as escadas, a porta do quarto de Igor encostada. Ando devagar porque já tive pressa e sei todos os passos e caminhos que darei e seguirei. Sorrio. Sento ao lado do corpo quente do meu irmão. “Igor, acorda!” Ele abre os olhos, sonolento, não entende direito e só percebe que o fim é agora quando leva a segunda estocada no peito. Enfio a faca fundo, sinto o colchão. Trabalho na perfeição daquele momento durante uma hora. Nada do pouco de humano de Igor resta. Agora ele sabe no que me transformou.

A porta do quarto de meus pais está fechada. “Por quê não?”

Mamãe se afogou no próprio sangue. Papai nem abriu os olhos.

 

“Polícia”

“Eu terminei a história do meu jeito. Eles estão lá em cima… “

“Moça, não entendi…”

 

Quando a PM chegou, eu estava sentada no sofá da sala olhando meu reflexo na TV… pensava nas ondas do mar batendo nos meus pés e do quanto eu gostava dessa sensação …