Contos

A ENTREVISTA

Jesus Cristo me olha com intensidade. Não tenho idéia do que passa em sua cabeça. Negro, bonito, cabelo raspado estilo jogador da NBA. Ele dá um longo gole. Esvazia a taça de vinho. Jesus Cristo está com uma camiseta branca, uma calça jeans básica e uma barba de dois, três dias. No pulso esquerdo, percebo uma tatuagem. É um nome. Não importa qual. Eu também tenho um nome em meu corpo. Não importa. Jesus Cristo coloca a taça vazia em cima da mesa. Olha ao redor, faz um clima (percebo!). O bar está cheio, ninguém nos nota. Ele me encara novamente, se ajeita na cadeira. Seu cheiro é doce. Não identifico a fragrância. Não entendo de cheiros. Ele me encara novamente, se ajeita na cadeira.

“É foda!”

“É”, concordo sem hesitar. Realmente, é foda.

“Como você sabe que não sou uma fraude?”

“Eu não sei. Bom, você não teria porque mentir para mim. E depois, sua taça cheia agora não é algo muito comum. Não?”

“Ah, a taça vazia, depois cheia (rs). É um bom milagre! Gosto dele”

“Percebo (rs). Preciso chamá-lo de senhor? Afinal, és o filho de Deus”

“Relaxa. Não sou tão mais velho que você. Vai gravar?”

“Sim. Se incomoda? Posso começar?”

“Seu filho pediu para dizer que é preciso ter fé… ok, comece!”

“Arrependido de ter morrido por nós? Afinal, você já deve ter percebido que a humanidade não melhorou muito depois da sua morte.”

“Por que vocês, jornalistas, sempre começam pela mesma pergunta?”

“Hum, será que é porque somos jornalistas?”

Ele sorri. Eu sorrio. Estamos indo bem. Acho.

“Cara, não me arrependo daquilo tudo não! De certa forma havia dentro de mim um mínimo de esperança que a morte do filho de Deus abrisse a cabeça das pessoas. Como você disse, não deu muito certo… vocês ainda não sabem o que fazem.”

“Você acreditava naquela história toda de paz e amor?”

“ E você acredita?”

“Às vezes, mas o entrevistado é você.”

“Sim, acreditava. Acreditava…”

O olhar de Jesus Cristo se perde em algum lugar que não identifico. Não leio seus pensamentos. Mais um gole de vinho. Seus olhos castanhos brilham.

“Jesus, você acredita em Deus?”

Um longo suspiro…

“E você, acredita nisso que sente no coração agora?”

 

Penso alguns segundos.

 

“Não sei… dessa vez o final da sua história vai ser diferente?”

“Sim, será. Mas lamento dizer que o final de vocês não será bacana. Inclusive, o seu.”

“Ok, sem problemas. As pessoas te ouvirão desta vez?”

“Não. Ninguém me ouvirá. Você tem medo do futuro, meu caro repórter?”

“Não. Honestamente, não penso sobre ele!”

“Entendi. Carpe diem, não? Sabe o que mais me incomoda nessa história de ser filho de Deus?

“Não imagino”

“Sou apenas um instrumento. Não altero nada. Não modifico. Não transformo. Digo coisas como tantos dizem e isso se perde no meio do tanto que é dito. Meu pai não é um ser fácil de se lidar. Estou cansado”

“Jesus, você está deprimido?”

“Hum, senti uma certa ironia nas suas palavras”

E rimos, rimos, rimos…

“Suas palavras são honestas. Elas significam muito para aqueles acreditam. Você não é apenas um instrumento!”

“Tá, você é gentil, mas isso não reverterá em pontos para entrar no paraíso!”

A gargalhada de Jesus Cristo é exagerada. Impossível não se contagiar. O cara, filho de Deus, bêbado, deprimido e reclamando da vida. Cada uma, elaia.

“Você sente falta deles. Sua dor é quase palpável . Você não entendeu nada”

“ Não sou perfeito, lamento!”

“Ninguém é, caro repórter. Ninguém é!”

Fitas rolam. Taças vazias se enchem do nada. Palavras são ditas e se perdem no tempo. Tempo que passa sem percebermos (gosto desse clichê. Algum problema?)

“Me responda uma coisa, caro repórter. Por que você quer respostas?”

“Para entender aquilo que você sabe que não entendi! Talvez…”

“Hum, você está bêbado também!”

“Jesus, é possível viver sem medo?”

“Não!”

“Jesus, você está com medo?

Ele não responde.

“E você, está?

Eu não respondo.

“Não há um outro jeito? Uma outra saída? È preciso acontecer tudo isso?”

“Vocês tiveram a chance de mudar… agora…. é tarde…”

“Poxa…”

 

“É”

Uma última pergunta.

“Por que você me escolheu para essa entrevista?”

“Porque ninguém te escutará!”

Ele se levanta. Um adeus sem palavras. Vira-se e parte. Fico sentado, olhando o filho de Deus ir embora. Em tempos (nossa como fazia tempo!), não há pensamento algum em minha cabeça. O barulho daquele boteco me absorve. Cigarro, maconha, vodka. Cheiros. Há tanta vida ali naquele momento. Fecho os olhos.

“Posso voar?”, pergunta a menina de cabelos castanhos, olhos castanhos, vestido branquinho e com um machucado na testa do lado direito.

Eu sorrio. É o sinal. Ela voa.

 

….

 

Lá em cima

“Então, Jesus, conseguiu falar com ele?”

“Sim”

“E agora?”

“Não há nada para fazer além de esperar”

Contos

O ESPELHO

Papai dormiu. Por muito tempo, no entanto, ouvi o nheconheco da cama velha. São poucas as horas em que ele fecha os olhos e se deixa levar por Morpheus. Mas desde o dia que me matou acho que o Deus do Sonho desistiu dele. Assim como todo o resto. Então, meu pai não me matou assim do jeito que você pensa. Minha tia que gosta de falar dessa forma para machucá-lo. Não sei porque falei assim também. Você pode pensar mal do meu paizinho. Desculpe, assim como ele, às vezes não penso no que digo e acabo sendo cruel…

Papai sempre cometeu muitos erros em sua vida. Muitos. Isso não significa dizer que ele é uma pessoa do mal.Talvez incapaz em alguns momentos. Incapaz de lidar com fatos, verdades e seus próprios defeitos. Temperamental. Nunca fugiu de brigas, nunca manteve a boca fechada quando preciso, nunca deixou de acreditar…

Ele era o meu herói…

Papai ao meu lado se transformava. As marcas de tensão de sua testa sumiam. O sorriso era fácil. “Meu tesouro!”, era o que dizia antes de me fazer girar, girar, girar. E a minha gargalhada deixava no coração do papai uma marca de eternidade como aquelas histórias bonitas que lia. Assim foi por anos. Mesmo longe da minha mãe, ele estava presente o tempo todo na minha vida. Aliás, mamãe foi outro erro em sua vida. Papai, de fato, nunca amou mamãe. Eu nasci, ele não suportou a mentira que vivia com ela e se foi. Não me deixou, no entanto. Mamãe atazanou papai muito depois disso. Vovó, titia, também. Elas queriam enlouquecer papai…

conseguiram…

Na noite anterior à minha morte, papai me abraçou forte e chorou como eu nunca vira antes. Papai não chora, eu pensava. Papai é forte, eu pensava. Papai chorava, papai era fraco. Aí o universo se fez verdadeiro na minha cabecinha de 10 anos. Ali naquele momento, descobri que precisava ser uma mulher de verdade porque ia cuidar do meu paizinho cansado de guerra. Minha inocência acabava ali. Hora de crescer.

Antes, no entanto, houve Sophia. Houve Sophia e papai. Houve paz. Papai ali com Sophia parecia papai comigo. Sorriso fácil. Rosto de menino. Barba feita todas as manhãs. Havia uma outra mulher na vida de papai além de mim. Eu estava feliz com isso. Sophia estava começando tudo de novo. Quando viu papai pela primeira vez, Sophia ficou vermelha de vergonha. Juro, ouvi o coração de Sophia batendo como nunca. Papai também… Gostava de ver a cara de bobo dele.

Mas tudo mudou…como tudo muda. Papai chorou e eu não virei mulher…

Havia cheiro de chuva forte no ar. Meu paizinho me ensinou a sentir esse cheiro. Lá longe, as nuvens já se agrupavam escuras e nervosas. Arrepiou meu coração quando vi aquela cena. Mais do que isso, mamãe dizia muitas bobagens dessa vez. Não sabia para quem. Demorei para sair daquele sono até perceber que quem gritava junto com ela era meu pai. Coisas tão tristes foram ditas, tão tristes… Pela primeira vez em minha vida, senti que perderia meu pai para sempre. Não podia deixar isso acontecer…

Papai era instável, perdia a paciência com a família da minha mãe com facilidade. Desta vez, elas mexeram de fato com papai. Ele se segurou para não bater em mamãe. Saiu. Bateu a porta como tantas vezes fizera antes. Entrou no carro.

E acelerou….

acelerou…

acelerou…

acelerou…

acelerou…

acelerou…

acelerou….

e …

tummmmmmmm….

O mundo girou. Por pouco, papai não se foi para sempre. Bom, de certa forma, ele se foi…

Papai sentiu o sangue escorrendo por sua testa, mas percebeu que havia algo a mais naquela cena. Primeiro, um ursinho cor-de-rosa. O mundo girou novamente. Depois, o maior de todos os seus erros se fez presente: meu rostinho no meio das ferragens. Minha testa machucada do lado direito… Tanto sangue sujou a roupinha que ele tinha me dado. O mundo girou novamente. Tanta coisa se perdeu em vermelho… Tanta coisa….

Não sei como ele saiu do carro e nem como ele me tirou de lá…

…eu não deixaria ele ir embora sem mim.

Papai caminhou horas com seu tesouro sem vida no colo. Horas. Não havia mais nada dentro dele quando as pedras voaram em sua direção.

Sophia o defendeu.

Papai a expulsou de sua vida, como fizera com todo o resto…

Papai não quer piedade, nem perdão…

Papai comete muitos erros…

Papai não é perfeito…

Enfim, e nesse mundo de meu Deus, quem é?