Contos

A CASA

Era um corredor extenso, grande mesmo. Saía da cozinha e levava aos dois quartos, um maior outro menor, e ao banheiro. Havia tapetes nesse caminho. Todas as cores do mundo, se você olhasse com atenção poderia ver que eles – os tapetes – brilhavam no escuro e um par de olhos verdes dizia todos os segredos impublicáveis sempre depois da meia-noite. Mas era preciso acreditar, antes de tudo. Quase sempre, a lâmpada que ficava no meio desse corredor se apagava sozinha, se acendia depois com força quase de um sol inteiro, se apagava novamente pra nunca mais. Em noites de pesadelo e de chuva forte, que bate na janela com força de um grito dizendo “eu sou a sua morte e te quero bem…”, aquele corredor não tinha fim e nenhuma de suas milhares de portas se abria. Nenhuma porta se abria. E o desespero só aumentava porque simplesmente nenhuma porta se abria e o corredor não tinha fim.

Você sabe que eu não minto muito. Essa história é a história de um velho e de uma velha casa. Tudo que virá a seguir é verdade. Ambos demoraram séculos para se encontrar. Me sinto triste quando lembro do velho. Ele não era de todo mau, tinha um humor peculiar e via a vida com olhos verdadeiros, sem filtros, sem pudores, sem medo ou com o maior pavor de todos. Ele era um velho que conheceu o mundo. Sim, o velho não tinha mais idade e por causa desse detalhe, não ter um fim, decidiu numa bela manhã de abril, quando a lua tinha dito adeus, partir sem rumo. Ele partiu a pé, se foi, sem dizer adeus, não havia ninguém para dizer adeus. Ele foi. Antes, porém, queimou suas asas, queimou seus quadros, discos e livros, queimou seu coração. Andou, andou e andou e andou porque não servia para nada correr desembestado feito um besta.

Ele estava cansado, só isso.

Andar era o remédio para não pensar em mais nada, naquilo que havia deixado para trás (teria deixado algo para trás mesmo?), naquilo que não prestava pra mais nada. Conheceu então o mundo inteiro. Sem saber, enquanto percorria montanhas, oceanos, rios, campos, sistemas solares, ele procurava algo… ele não sabia, mas procurava sua casa, seu lar, o lugar no qual fincaria suas raízes e finalmente encontraria paz. O lugar em que fecharia seus olhos e se deixaria levar como alguém que decide na hora do afogamento parar de lutar e deixar toda aquela água fluir pra dentro de si. O local que fecharia o imenso buraco de seu peito, buraco esse que existia bem antes de tudo. Um buraco invisível que nunca se fechara, que nunca se contentara, um buraco que nunca deixara o velho quando era apenas um homem comum se aquietar num canto qualquer. Esse buraco trouxe inquietação, desejos, perdas. Com o seu vazio, de certa forma, esse buraco matou o velho, mas não conte pra ninguém porque ele nunca percebeu que na verdade não existia mais.

O velho andou anos-luz. Viu estrelas nascerem, cometas colidirem, anjos fazendo anjos. O velho viu deus morrer.

Ninguém se lembra como, quando e por que a casa foi construída. O que todos garantem é que ela sempre esteve lá, desde a aurora dos tempos, desde quando aquela mulher comeu o que não devia ou teria sido aquele homem, ninguém sabe mesmo traçar uma linha do quando essa casa apareceu na face da terra. O fato, ela está lá, sempre esteve, estará quando nós partirmos dessa pra melhor ou pior. Na sala, há uma cortina vermelha, bonita, que impede, quando totalmente fechada, que a luz entre e clareie toda a escuridão. Ninguém também nunca viu aquelas cortinas abertas ou pelo menos não se lembram. Na sala, há um sofá, pequenas estantes, duas portas, uma para entrar outra pra sair. A lâmpada nunca se apaga sozinha.

Em uma das paredes, um quadro queimado pela metade que talvez tenha sido salvo de algum incêndio, quem sabe? No que sobrou desse quadro, um coração também queimado servido aos demônios como prato principal. Percebe-se numa análise mais detalhada que os demônios não aceitam o coração. Se você encostar seu ouvido, se aproximar do quadro, ouvirá o coração lamentando… “nem eles me quiseram…” Se você tivesse coragem de abrir as cortinas vermelhas veria uma bela janela de ouro que te levaria a outros mundos, bastava para isso dizer sim, eu quero ir… As cortinas nunca foram abertas…

Na cozinha, uma grande mesa, talvez comportasse em seus bons tempos 500 soldados, quem sabe mil donzelas em seus vestidos rosa e azul anil. Hoje, a mesa não recebe mais ninguém. Um forno antigo, que dizem ter acolhido o primeiro fogo do mundo, jaz sozinho no canto pedindo um pouco de atenção. Há uma janela ali também, sem cortinas. Quando você olha por ela, vê o futuro, tudo aquilo que poderá ser e não o é agora, mas ninguém, nunca, em nenhum tempo, olhou por aquela janela. Se assim tivesse feito, qualquer pessoa, nossa história hoje seria diferente, no entanto, claro, essa é uma outra história.

O chão dessa velha casa é de terra batida, terra tão velha quanto a casa, quanto a Terra, quanto o velho. Milhares andaram por esse chão. Agora não mais, apenas sombras e uma boneca, brinquedo de criança, que insiste em viver mesmo sabendo que bonecas não podem viver, não faz sentido um brinquedo viver, mas aquela boneca é danada, quer viver e quando a meia-noite bate, depois dos olhos verde proclamar todos os segredos do mundo, ela passeia pelos cômodos, rindo alto, correndo feito moleque, brincando com cachorros imaginários e filhos perdidos, que se foram antes de seus pais. Aquela boneca quer viver, poético isso, ela quer viver, mas não pode, não dá, não faz sentido algum… onde já se viu uma boneca de brinquedo querer viver?

Antes das bestas saírem para caçar, alguns minutos antes, a casa para de ranger. Tudo silencia. O corredor. A boneca. A janela. A chuva. Os grandes e tristes olhos verdes. A cachorra manca que não existe mais. Quando o relógio toca três da manhã shuuuuuuu nada mais se move naquele pedaço de mundo esquecido por deus …

Numa manhã fria, gelada mesmo, de neve nos trópicos, finalmente, o velho parou em frente ao portão daquela casa. Os dois finalmente depois de eras se encontravam. O portão rangia pra lá e pra cá com o vento e o velho pensou um pouco se deveria entrar ou não entrar na casa. Ele sabia, não sei como, que ela o esperava, que ela de certa forma, seria o fim da linha. O velho pensou e pensou. Concluiu que nada poderia ser pior do que tudo fora antes. Ele, portanto, decidiu entrar na casa. Como por mágica, no instante em que decidiu dar o primeiro passo, um raio cruzou todo o céu cinza. Teria sido uma bela foto.

Me esqueci de falar como se entra na casa. Há duas portas. Bom, antes, você abre o portão, segue pela trilha de cruzes plantadas metodicamente por uma senhora que vivera muitos anos antes. Essa trilha se bifurcará. Então, as duas portas. Uma levará à cozinha. A outra à sala. Se você está esperando alguma surpresa quanto à escolha de uma das portas, me desculpe, nada de especial acontecerá. O velho sabia disso, de alguma forma, ele sabia que qualquer porta era uma porta e ponto final. Escolheu a da sala. Ah… não havia chaves para essas portas. Bastava girar a maçaneta e pronto.

O velho escolheu a porta da sala,

girou a maçaneta e entrou…

Dois passos para dentro,

o velho na casa,

a casa no velho.

a porta se fecha…