Contos

Epifania

No instante em que eu fechei meus olhos, soube tudo. Toda a história brotou no meu cérebro. Tudo, tudinho. O começo. A direção. A conclusão. As palavras se sucediam e cada parágrafo se formava na minha cabeça, cada frase era degustada. Eu sabia qual o tempo, qual o ponto da virada, sabia das mortes, sabia da solidão que aquela moça pequena de olhos grandes viveria, entendia perfeitamente porque o antagonista jamais seria o protagonista. Via os cenários, via os figurinos, sabia tudo de suas cores, sons e cheiros.

Aquela história que nasceu como mágica no instante em que meus olhos fecharam (se eu acreditasse em magia ou coisa que valha) teria quatro atos. Em cada um deles, o homem seria criança, seria homem, seria velho, seria nada. Esse homem (e eu o conhecia tão bem, tão por inteiro e fazia apenas segundos que ele invadira minha mente) não queria mais nada. A cada final de ato, a cada final de capítulo, ele procuraria uma saída. Eu já sabia como resolver cada um dos seus dilemas. Eu poderia ver como a sua vida se desenrolaria e como essa afetaria e seria afetada por um mundo de melancolia que nascia e morria a todo instante.

Havia um filho desse homem e se houvesse luz nessas palavras todas estariam voltadas para o garotinho que não viveria mais do que dez anos. Mas sempre que o moleque aparecesse na história, o homem saberia que tudo teria valido a pena.

Eu já via, então, o romance pronto, delineado, com capa dura e desenho pintado na aquarela, desenho que nada significaria para os outros, mas que faria sentido sim não importa para quem. Sentia em meu delírio o sucesso das vendas, dos editores me querendo, dos cineastas me querendo, do Jô Soares me querendo. Meu best-seller.  Via  as edições traduzidas para o russo, francês, tupi. As longas e excitantes viagens de promoção. Perguntas inteligentes de repórteres que haviam lido de fato o livro e não o resumo. No instante em que eu fechei meus olhos, soube como seria o futuro

Mas… abri os olhos, o despertador marcava quatro da manhã e nada havia restado de lembrança daquela história que mudaria o mundo.

Nada.

Atividade escolar

NADA DE FLORES

A saga de um tomate podre que não serve para os porcos, mas alimenta os humanos sem donos. Idéias contraditórias e que surgem na tela como verdadeiros socos no estômago são o fio condutor de Ilha das Flores. Quando lançado no final dos anos 80, o documentário experimental em curta metragem, causou polêmica justamente por apresentar uma realidade brasileira caótica de forma irônica. Dirigido e roteirizado pelo gaúcho Jorge Furtado (responsável pelo politicamente incorreto e delicioso O HOMEM QUE COPIAVA), o filme ganhou prêmios mundo a fora e se firmou como um marco na cinematografia nacional. E o melhor de tudo: coloca o dedo na ferida daquele que o maior problema do Brasil – a desigualdade social.

Ilhas das Flores, em seus treze minutos, faz um painel contundente do quanto a degradação humana atinge níveis impensáveis. No início, o filme surge como uma comédia. Algo para se fazer rir, graças às boas tiradas de um roteiro rápido e objetivo. Não se demora muito, no entanto, para a aparente diversão se mostrar de fato o que é. A explosão da bomba atômica, numa imagem que não dura na tela mais do que um segundo, deixa clara qual é a intenção de Furtado. E o incômodo só cresce para o espectador.

Como dito antes, o ponto de partida de Ilha das Flores é o tomate. Um inofensivo tomate produzido por um japonês gaúcho no extremo do país. Da utilidade do produto até o descarte do que surge estragado para uma dona de casa, o simples tomate tem sua “experiência” de vida e morte contada num ritmo de videoclip. Apontando para uma conclusão terrível: a comida podre que não serve para o porco, serve para o morador pobre da Ilha das Flores – local, aliás, que chamou a atenção das autoridades (autoridades?) tamanha comoção levantada pela película na época. Problema que todos sabiam existir muito antes do filme ser lançado, mas…

A comédia, o bom humor, sempre foram as armas do cinema italiano para denunciar a soberba das elites. Etore Scola, Fellini e, mais recentemente, Roberto Begnini fazem a platéia rir incomodando-os com a própria incoerência de sua sociedade. Jorge Furtado segue essa escola. Seus filmes posteriores fogem do estereótipo da pura diversão. É difícil não ficar incomodado com seu jeito de ver o mundo e ILHA das Flores é um exemplo claro disso. A crueldade de Furtado se mostra por completo com a utilização de trechos da obra o GUARANI de Carlos Gomes. A grandiosidade da trilha, aquela coisa de país em desenvolvimento rumo ao primeiro mundo, contrasta com seres humanos agindo como ratos e porcos atrás de comida podre que não serviu a outros seres humanos. Detalhe: Ilha das Flores não é uma ficção.