Contos

A descoberta

Terminava o banho quando o burburinho se transformara num alvoroço lá embaixo. Eu não conseguia distinguir o que era aquele barulho de pessoas se juntando e aumentando o volume. Não pareciam gritar, mas de fato e era claro pra mim, enquanto me enxugava, que algo acontecia e que isso deixava a todos estupefatos. Vivo no terceiro andar de um prédio antigo, dos anos 60 talvez ou nem tanto, anos 70 ou final deles, não sei precisar. Digo isso porque edifícios como esse costumam ser maiores e, portanto, o caminho que percorri entre o banheiro, quarto e sala levou mais de três minutos. Tenho que confessar que sou manco da perna direita, anos de dores crônicas no joelho me transformaram num aleijado. Foram três minutos de passos vagarosos.

Quanto mais próximo da janela da sala, que estranhamente deixara aberta já que minha fobia de tudo impede um maior contato meu com o meio ambiente e por isso tudo fechado deixo, o som de uma descoberta se fazia perceber. Passo a passo e eu já conseguia ouvir coisas do tipo “nossa”, “como pode?”,“é o fim do mundo”, “maravilhoso”, “chamem a polícia”. Minha excitação crescia enquanto minha perna direita manca doía a cada tentativa de acelerar a minha chegada. Queria saber o que estava acontecendo… Queria saber tudo… Queria saber como as coisas funcionavam… Queria saber por que eu fiquei sozinho no fim… Queria saber por que toda madrugada acordo com a respiração de alguém ao meu lado e nunca há alguém ao meu lado… Queria entender por que agora algumas pessoas aplaudiam lá fora, enquanto outras pareciam aterrorizadas…

Mas não havia como apressar meu lento passo e nem explicar o muito que eu não entendia ou sabia.

Nesses três minutos, pensei nos filhos que não tive, na mulher que não amei, nas viagens que não fiz, nos cachorros que não criei. Pensei na vida que tive e tenho agora e o que restou de tempo é tão pouco, tão pouco, tão pouco…

Dois segundos, um passo a mais e alcanço a janela. De lá, tudo agora é possível ser visto. Um céu azul preenche a moldura dessa janela. Olho para baixo e não posso dizer quantos lá estão. Incontáveis. Todos olham para cima, a sua frente, o que significa minha direita. Forço mais a velha janela, tão doente e só quanto eu, apoio minhas cansadas mãos e viro minha cabeça para a direita também. E agora sim posso ver o que todos viram… “lindo, lindo, lindo demais!”

Crônica

Rascunho #2

RISCADO DO MAPA

Passou despercebido. Ninguém notou, cobriu o evento, mandou fotógrafo ou equipe de filmagem. Pelo menos, que eu saiba (você sabe?), o Ocidente não fez isso. Maldosamente chamado de “clássico de fome”, Etiópia e Somália disputaram na última quarta-feira o segundo jogo da luta por uma vaga na próxima fase da Eliminatória africana para a Copa 2014. Agora, responda, sobre a África o que não se passa despercebido?

Em agosto passado, a pior seca dos últimos 60 anos no continente colocou 13 milhões de pessoas em situação de emergência. Um mês depois, presidentes da Somália, Quênia, Djibuti e Etiópia lançaram-se a um “pedido desesperado” de ajuda financeira à ONU. Na ocasião, inclusive, outro número macabro lançado a quem estivesse disposto a ouvir: 750 mil pessoas da região conhecida como Chifre da África correm sérios riscos de morrerem de fome até o final do ano. Sabe a África? Aquele continente que se encaixa no Brasil? Cerca de 900 milhões de pessoas vivem nele, lembrou? Pois é, mas parece que não existe mais.

Mais números: 71% dos infectados com o vírus HIV estão na África. E aí alguém se mexe para mudar esse quadro? Se sabemos que mais de 500 mil pessoas morrerão de fome, por que não fazemos nada? Há algum tempo, li um artigo no qual o tiozinho dizia que 80% do mundo de hoje não fariam falta ao Capitalismo. Isso quer dizer que pouco mais de um bilhão de pessoas são suficientes para que o sistema econômico vigente continue sua vida. E o resto? É apenas resto? Quando penso em escrever sobre o continente africano, só chega à minha cabecinha que não entende as coisas um monte de perguntas (algumas, inclusive, já as fiz nesse rascunho). Foram mais de 400 anos de escravidão, depois um século de invasão e permanência europeia e agora nada. Nada! Como se 900 milhões de pessoas não existissem, não estivessem aqui vivendo, tentando sobreviver, sorrindo, amando. Um vazio no mapa e nada mais.

Não sei se você acha normal pensarmos nesse continente de forma tão distante. Eu não acho. Sabemos que as culturas brasileiras têm muito mais a ver com os africanos do que com os europeus, mas nós, em nossa ignorância de pequenos emergentes de um mundo novo, fechamos os olhos ou fazemos pensar que o problema não é nosso. É claro que algumas iniciativas existem. No entanto, são tão poucas, tão insuficientes tamanho o abandono de uma África inteira. Parte da fortuna de um desses homens mais ricos do mundo resolveria a questão da fome nesse lugar… e daí, não é? A tempo, a Etiópia goleou a Somália por 5 a 0 e ainda sonha com uma vaga na Copa do Mundo de 2014.

Contos

Luka de bico

“Não sabe nada de física, literatura, gramática. Eu só gosto de educação sexual e eu odeio, Química, Química, Quimicaaaaaaaaaaaaaaaaaaa”……….

“Luka, abaixa esse volume e desce pra comer!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Você não disse que ia estudar??? Não dá para se concentrar com esse barulho todo!!!!!!!!! ”

Minha tia. Ela é legal. Histérica, mas bacana. Cuida bem de mim e se preocupa até demais. Estou com ela há uns cinco anos. Tenho 15 agora. O verão está chegando. O final de ano. O Natal. Meu aniversário. E o pior de tudo: semana das provas finais. Não agüento mais estudar e hoje é daqueles dias que não vejo a mínima necessidade de se aprender alguma coisa. Estou meio mórbida e me veio na cabeça uma piada de muito mau gosto. O molequinho pentelho chega todo feliz e pergunta para a mamãe: “Mãaaaaaaaaaaaaaaeeeeee, o que eu vou ser quando crescer???. A dona-de-casa assustada, vira para o moleque, pega ele no colo e responde: “Nada, meu filho. Você tem um tumor no cérebro”. Bom, eu não tenho um tumor no cérebro. Tenho o vírus da Aids. Enfim, dá no mesmo. Vou morrer. Meu nome é Luka (sim, com k – minha mãe era metida demais).

Esse ano inteiro foi meio maluco. Muitas coisas que me alegravam perderam a cor. Não sei, mas me afastei demais da realidade, sabe? Não consigo explicar direito como começou esse processo. Estou longe da Gil, da Karina, da Helô. Elas cresceram comigo. Estamos juntas na escola desde o maternal. Não tenho vontade de ligar pra elas. De falar com elas. Claro, não disse isso a nenhuma delas. E também não me importo de não perceberem a minha nova vida. Bom, elas só se preocupam com meninos agora. Isso está enchendo as cabecinhas das minhas amigas.

Enquanto a Cidona, professora de geografia, explicava o fenômeno da Globalização e como esse indivíduo influencia a minha vida, olhava para o que estava do outro lado da janela. Na calçada, uma moça bonita demais beijava um rapaz bonito demais. Eles estavam tão felizes, tão cheios de vida, que era impossível não sentir uma alegria profunda ao vê-los assim. No segundo seguinte, porém, me baixou uma tristeza tão grande … Algo que tem se repetido tantas vezes nas últimas semanas. Nunca fui assim, mas não controlo mais a minha razão. Preciso contar a verdade. Estou tão confusa e com tanto medo. Como vai ser depois que ele souber?

A janta está caprichada. Parece que a minha tia leu os meus pensamentos. Macarrão com atum. Eu adoro essa combinação. Não pude resistir ao pecado da gula. Repeti o prato e minha tia com um olhar tão carinhoso me fez sentir segura de novo. Minha cabeça está uma montanha-russa, digo em voz alta. “A gente vai passar por essa. Tivemos momentos ruins antes”. Minha tia histérica é sábia também. É verdade, tivemos momentos bem ruins. E olha só. Estamos eu e ela agora, juntas, chorando feito bobas, com uma panela de restos de macarrão com atum no meio do nosso silêncio.

Sempre tive muita desconfiança desse negócio de diário. Na verdade, não tenho paciência de ficar escrevendo. Não gosto. O Rafael, professor de História, me enche o saco por causa disso. Fazer o quê? Não gosto e ponto final. Mas foi fácil começar a escrever o que vai aqui dentro do meu coração. Minha alma está falando…Ohhhhhh, estou ficando brega também. Esse ano tem sido meio maluco. Falando no Rafael, parece que ele se livrou da namorada gorda. Parece mentira, mas ele era outro homem hoje na sala de aula. Sem sacanagem, foi a primeira vez na minha vida que tive interesse em prestar atenção numa aula de história. O cara detonou. Veio com umas fotos, botou uns sons indígenas, contou umas historiazinhas de fantasmas. Caramba, esses 50 minutos valeram por todo um ano de enrolação.

Queria tirar esse peso das costas como o Rafael fez. Vou dormir. Amanhã tenho prova e não estudei nada. Estou cansada. Como vai ser quando eu tiver que tomar o remédio? Queria acreditar que vou sair dessa…queria mesmo. Bom, só tive um dia ruim… A sorte muda, dizia o meu pai…Safado. Quando penso nele e no que fez com a gente. Minha tia diz que eu sou muito nova para ter tanto ódio por alguém. Não consigo evitar…

“Luka, pelo amor de Deus, vai dormir!!!!!!! Estudou pra prova?? Escovou os dentes???? Menina, você não toma jeito! Vai ser criança até quando?…”

“Para sempre”… pensei em gritar do outro lado da porta. Mas não disse nada.

Crônica

RASCUNHO #1

E se o mundo tivesse acabado?

Aí paramos tudo. Ninguém mexia nas canetas, as provas intactas nas mesas. Todos atentos  no relógio e no ponteiro que fazia a fatídica contagem regressiva que começava (ou terminava, como preferir): cinco, quatro, três, dois, um ………….. e o mundo não acabou de novo! Acho que eu ainda ouvi de alguém um ahhhh bem debochado do tipo pelo menos eu não faria prova. Mas o mundo não acabou, segue a vida, me passa a resposta da um.

Só em 2011, senão me engano, esse planeta acabou umas três vezes. Por que tanta fissura pra ver essa bolota azul deixar de rodar? Aliás, essa fascinação pelo fim do planeta cheio de água que tem o nome de terra não vem de hoje. Vira e mexe, um profeta perdido desses que aparecem por aí dita um novo fim, uma nova data e todo mundo na expectativa, fingindo que dessa vez não se importa. A próxima previsão e a mais famosa do momento é a do the end de 21 de dezembro de 2012. Alguém aí pegou umas ideias dos maias e concluiu que dessa a Terra não escapava. Bom, é pagar para ver.

Mas e se um dia os caras acertam? Vai ser estranho e mais estranho ainda será a certeza de que nosso planetinha, nós e sei lá mais o quê não farão falta alguma a esse universozão do teu Deus. O que é fato de hoje é que a Terra não acabou e se acabou nos esqueceram aqui. Poxa vida, até nessa de fim do mundo brasileiro fica pra trás…

Confesssa: teve aluno que no três um pouco antes do dois suou frio e começou a rezar achando que dessa vez pudesse ser o fim mesmo, confessa!