Contos

A canção

O fim de um livro que amo me destroça. As últimas páginas, frases, palavras e aí acabou. Então, choro feito uma criança com fome. Bobo, talvez. Faltavam dois capítulos. Minha leitura era voraz, qualquer canto, qualquer lugar, e lá estava o livro aberto sendo devorado. Quero o fim, mas não quero, sabe? Dói essa saudade deixada lá dentro. O trem parou na estação tatuapé abarrotado, cheio por demais, havia um pequeno espaço e lá me enfurnei. Me ancorei no balanço do trem num surf esquisito, as duas pernas abertas, toca o sinal, fecham-se as portas, caminho que segue e a história retomada de onde eu havia parado. Vagão lotado, barulho intenso, grande, desconcertante e que incomodava. Poluição. Todos dizendo tudo e nada ao mesmo tempo. Eu me concentrava, tentava, me deixava ser engolido por aquele elemento, perdido no branco da página, no negro das letras que contavam uma história…contavam uma história, era feliz assim, sozinho, “com meus livros e discos e nada mais”. Absorto, em meio ao silêncio de um barulho constante que não cessava, as palavras me ferindo, me chocando, me entristecendo e o peito doeu uma, duas, três vezes. Estação brás, mais gente pra entrar. A campainha toca, o trem parte e então…

Hum hum…

Hum hum

Hum hum

Hum hum…

Eu conhecia aquela melodia. Sabia exatamente quando havia a escutado pela primeira vez. “Segura na mão de Deus e vai… Segura na mão Deus pois ela te sustentará…” Enterro de meu avô e a primeira vez que percebi que o fim era assim desse jeito, que tudo que vivia, morria, não havia segunda chance. Ali chorei sentido não por meu avô, acho que nem gostava tanto dele, mas por tudo acabar um dia. Na época não sabia a benção disso…

A montanha lá em cima e eu subindo, um passo de cada vez, cada vez mais lento e como de costume, todo o peso do mundo em minhas costas. É fato. Eu não sabia deixar de lado as coisas, não sabia me desapegar, não sabia como consertar nada ou simplesmente seguir em frente, poxa, eu não sabia

O sol forte batia na minha cara, me esquentava, me fazia suar tanto, parei, larguei longe a mochila, larguei tudo, tirei minha roupa, nu, joguei tudo longe, abri meus braços e entregue ao deus sol, ali, lá em cima, me olhando, me engolindo, comendo, secando por dentro e por for. Eu era ali tudo e nada e com olhos fechados esperava apenas, o que até hoje não sei direito, mas sei que o que esperava, chegou…

Me perco das linhas do livro, das letras, frases, palavras, agora ouço a canção na minha cabeça, que não está na minha cabeça, está ali sim senhor naquele vagão, alguém canta a música do meu fim e somente pra mim, sabendo que escuto com toda atenção. Quem é? Quem está aí? Quem me chama de tão longe? Eu penso assim bem alto, ninguém ouve, claro, porque estou pensando, no entanto, aquela velha senhora, sorri discretamente, sentada, absorta também, está ela lá… zumbiando humhum, humhum, humhum.. ela me olha, não há mais expressão alguma em sua cara, ela procura o fundo dos meus olhos, minha alma, não há mais ninguém naquele vagão… eu e dois metros lá, menos até, aquela velha senhora com cara de bruxa ou nem tanto. Ela me consome, sabe tudo de mim… humhum, humhum, humhum. O livro cai das minhas mãos, cai em câmera lenta, nada é como a física manda, meus movimentos são vagarosos, mais do que costume e como nunca, estou desperto, esperto, sinto todos os cheiros, toda a eternidade que finalmente acabará, agora, sim porque aquela velha viera me buscar e eu estava pronto. “Segura na mão de deus e vai…” eu não acredito em Deus, fica quieto moleque… Vem e eu fui…

Quando ela chegou, não pediu licença, nem nada, ela me conhecia como ninguém. Meu sangue gela, meu coração dispara, mas aperta, diminui, não sei bem descrever o que acontece com a porqueira do meu coração. Ela está dentro de mim, vai devargazinho, penetrando cada poro, o sol lá em cima acha graça, tenho quase certeza que gargalha, porém, aqui, eu, me arrepio, corpo arrepiado, sendo possuído por ela, por eles, ela não veio sozinha, eles me consomem, me tomam todo, eu frágil, sozinho, lá longe o topo da montanha, e eu não sou mais eu porque aqueles que me amavam tomam por dentro e num segundo ao abrir os olhos, pude ver a vida de um outro jeito, de uma outra forma, sei que lágrimas corriam pelo meu rosto velho e enrugado, mas não era tristeza não… a vida que eu procurava, finalmente, encontrei, ali no fim…

… tamanha ironia…

Estação República, desembarque pelo lado direito do trem.

As portas se abrem, quase todo mundo, aos atropelos, tipo gado, sai sem dizer adeus.

Humhum, humhum, humhum…