Contos

A besta e a menininha

O elevador estacionou no quarto andar. Não era o meu destino. As portas ficaram abertas enquanto me recusei a dar os três passos que me colocariam naquele corredor. Não o notei, não guardei detalhes daquele lugar, não percebi rotas de fugas, nem portas, nada. Apenas na minha cabeça a decisão de sair ou não daquela máquina que parecia teimosamente empacada no lugar que não era a minha escolha. Dei os três passos. Como mágica, as portas se fecharam atrás de mim.

Sobre mim a mais negra escuridão que um homem já possa ter conhecido. Era densa, podia ser sentida entre os dedos. Sufocava. Assustado, sem um rastro de luz que pudesse me guiar, congelei. Não percebia que o caminho de volta estava a três passos para trás. Mas não estava, sabe. Não adiantaria procurar o botão que chamaria o elevador de volta. Ele não ouviria, não voltaria. O coração disparava, sentia o suor de medo escorrendo pela testa. Já não pensava mais direito. Quando andei, fui para a frente. Aí, me perdi de vez. Três passos para trás não serviam para mais nada. Estava perdido.

Então…

A podridão tomou conta e se alinhou à aquela escuridão e como uma irmã se fez presente. Eu não conseguia suportar aquele cheiro. Não havia como evitá-lo. Vomitei, vomitei, vomitei. Caí. De joelhos, rendido, derrotado, indefeso. Como saio daqui? Lá longe, passos. Não consegui gritar, pedir ajuda, nada. Estava atordoado e algo me dizia que aquele que dava aquela caminhada não era meu salvador. Quase nunca erro. O som aumentava. Agora, havia a escuridão, a podridão e os passos vagarosos de algo que parecia de fato se divertir com sua presa.

Consegui me levantar, mas queria mesmo deitar, deitar pra sempre, fechar meus olhos, dormir a eternidade, deitar e acordar outro, dormir, fechar os olhos e ver outra escuridão, não aquela, essa de agora me torturava, me assustava, era fria, imensa, era um pai severo. Deitar eu queria pra todo o sempre porque o cansaço era real, doía nos ossos, na alma. Deitar, no entanto, me levantara. Respirava mal e nada havia no estômago para cuspir fora. Um medo assim, eu merecia? Foi a última coisa que pensei antes dos passos pararem.

“Hummmmmmmm, quem veio pro titio? Aiaiai, que gostoso o que sinto aqui! Cadê, você, meu fofinho? Vem pro titio? Vem pra mim, vem gostosinho!!!!!!”

As garras em meu pescoço, meu peito, meu pinto, minhas pernas. Eram tantas. O bafo daquilo na minha cara. A língua roçava meu rosto. E ele falava, falava, falava. Não sei como, o empurrei. Parti para não sei onde, não tão longe, perto daquele que me devoraria em instante.

“Ahhhhh, foge não, filhotinho. Daqui ninguém nunca escapou. Você é meu, só meu, meu lanchinho. HAHAHAHAHAHAHAHAHAAHAHAHA”

Coloquei as mãos nos ouvidos, mas era impossível se defender, não ouvir, resistir. O coração acelerava cada vez mais, as mãos gelaram, a garganta secara. Chorei porque chorar era o que me restava, mas chorei baixinho porque assim tinha que ser…

“Vem pro titio, vem, vem… Tô chegando pertinho, to aqui do seu ladinho. Ahhhhhhhhhhh, você vai ser o melhor de todos… Vem, bebê, vem”.

Ele me farejava, me procurava, estava tão perto, perto demais, estava ali a um toque da minha alma. Estava ali pronto me engolir. “Me ajudem, por favor”, mas as palavras não saíram pela minha boca.

Tumtumtumtumtumtumtumtumtumtumtumtutmutmtutmtutmt

MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO MEDO

Então…

Aquelas mãozinhas. Pequeninhas. Fortes. Delicadas. Aquelas mãozinhas. Ambas puxaram meu casaco, procuraram pela minha mão. Encontraram. Me distraíram do fim que estava ali tão perto segundos antes. Aquelas mãozinhas me puxaram pra baixo. A voz dela, nos meus ouvidos, ali, de novo, como tinha sido antes.

“Pai, ele não sabe que eu to aqui. Shuuuu. Não diz nada. Eu sei sair daqui. Segura bem forte minha mão, bem fortão, assim muito forte, não vou te soltar nunca. Vem pai, vamos pra casa…”

“Pai, lembra quando eu te contei que tinha feito sexo pela primeira vez?”

“Eu lembro de você ter dito que tinha ficado com uma menina, não tinha ideia que ficar com uma menina agora era fazer sexo. No meu tempo, eram só uns beijinhos”

“Achei que você ia brigar comigo porque eu era novo demais pra aquilo tudo!”

“Ah, Leo, eu era tão velho na minha primeira vez e isso não ajudou as coisas serem mais fáceis na vida… Então, como poderia brigar com você?”

“Foi uma manhã bacana aquela que conversamos tanto, né, pai?”

“Eu fui um bom pai???”

A besta uivava, com ódio, arranhava a escuridão, comia a podridão, ela perdera sua presa, ela queria aquela comida, estava tão perto, seu coração a besta já o tinha há tanto tempo, ela queria o corpo agora, queria inteiro, o comeria uma parte de cada vez, com cerimônia, sem pressa, deleite.

A besta foi enganada por uma menininha chamada Bia, só Bia mesmo.

“Pai, por quê?”

“Cansaço demais, precisava dormir, perdi a conta, foi só isso…”

“Pai, você tá tão machucado…”

“Não se preocupa, verdade, está tudo bem…”

“Meu irmãozinho vai voltar pra você, papai, espera ele, não desiste, procura ele, verdade verdadeira, papai, ele vai voltar pra você”

“Isso não é real, não é?”

“Quem sabe, meu pai, quem sabe…”

Calili, sentada, me olhava com aqueles olhos mais tristes do mundo. Se ela pudesse falar, falaria putz, que noite, hein? Mas nada disse porque cachorros não falam. Me levantei, tomei água no gargalo da garrafa, a chuva havia parado. Calili me seguiu com a galinha sem cabeça na boca, queria brincar a danada. Olhei pela janela. A antena iluminada, uma estrela cadente, faz um pedido, fiz, antes de voltar para o meu quarto, passei pelo dela. Vazio. Nada. Um bercinho apenas, parado, sem vida, sem respirar, sem festa, sem choro, sem aqueles olhões castanhos imensos.

“Isso não é real, não é?”

“Quem sabe, meu pai, quem sabe…”

Contos

SÓ MARiA

Ahhh, Maria, pobre Maria. O que te espera nesse futuro que logo chega é tão triste. Tanto fardo para carregar sozinha. Todas as dores e tormentos de um só mundo. Doce Maria, dói se dor eu sentisse imaginar sua solidão, seu medo, suas perdas. E serão tantas perdas, tanta solidão, tanto medo.  Acorda, Maria, acorda. O tempo é esse. Estás só… como foi ontem, como será amanhã!

Maria abriu os olhos, a baba da noite impregnada no canto esquerdo da boca, os cabelos curtos quase arrumados apesar do sono agitado. Ela se sentou, mas ainda sentia que os restos dos sonhos ainda a perseguiam. A voz ressoava na sua cabeça. Até que o despertador tocou e tudo se foi. Maria tomou seu banho de 15 minutos, passou a mão pelas curtas madeixas (que prático, ela sempre pensava), escovou seus dentes. Camiseta básica, calça básica, como todo dia. Corre para a rua porque, pra variar, estava atrasada, sempre, para qualquer coisa.

Quando ela saberá? Hoje, talvez! Nada para impedir isso agora? Não. Ele decidiu. Ele quer. Ele deseja. Assim será! Poxa, poxa, mas Maria? Justamente Maria? É o que tem que ser feito.  Por que Ele tem tanta certeza que agora será diferente? Ele sabe. Valerá a pena? Eu não sei. Você sabe o que ela terá que enfrentar? Tudo? Claro, eu estava lá da primeira vez. Não é certo isso. Nunca foi. Não será.

Ela viu essa cena em um filme. O rapaz encarava um espelho no banheiro. A câmera se aproximava de seus olhos, tanto, tanto, tanto e num instante o moço via seu futuro. Toda vez que se via num espelho, cara a cara, Maria lembrava disso. Hoje, porque hoje tudo mudará, a menina foi além. Arriscou. Tornou realidade a ficção. Mergulhou em seus olhos castanhos tão castanhos que parecem a noite sem lua de um poema triste. Maria foi… recuou… percebeu que era real e foi. Pulou. Braços abertos. Um leve sorriso de conquista, quem sabe. Em seus olhos redondos, gigantes, lindos, tão tristes de outras vidas, Maria viu e soube que tudo aconteceria novamente. E seria ela a escolhida, again. Aí seu peito doeu como nunca e faltou ar. Tentou chegar à superfície, não deu.

Não tenha medo, Maria. Ele está contente com você. Mentiu a sombra. Na verdade, queria dizer o gigante que a moça precisava ter medo, estar precavida, sair correndo para qualquer lugar. Mas o menino mentiu como fizera da outra vez. Cumpriu seu dever. No entanto, agora, poucos minutos antes de trazer a boa nova à menina escolhida, o homem chorou. Não precisa ser ela. Maria já passou por isso. Por que seria diferente dessa vez? Eles não aprenderam nada. Deixe Maria em paz. Por favor. Por favor. Por favor. Ninguém o ouvia. O moço sentou-se ao lado de Maria, que dormia um sono agitado. Tocou seus cabelos curtos. Sorriu pra ela. Sorriu triste porque assim se sentia, mesmo sem entender direito o que se passava dentro dele. Sussurrou algo nos ouvidos de Maria. Segundos. Lá fora, um raio espoca com força. Tudo treme. Maria treme. Não é de frio.

Ela acorda. Percebe o silêncio de seu quarto e o vazio que tudo isso faz gritar de dentro dela. Maria agora sabe. Toca sua barriga. A protege com suas mãos pequenas. Sabe que ali dentro vai a sua vida, seu futuro, todas as perdas que virão do simples ato de dizer sim. Maria, na verdade, não lembra de ter dito sim, nem se foi assim. Ela prefere acreditar que tenha decidido e não apenas, bem, Maria não quer pensar nas possibilidades. Se levanta da cama, ainda a escuridão lá fora. No reflexo da janela, vê seus olhos gigantes. Fecha-os. Não há mais nada. Está feito.

Pobre Maria. É a última coisa que o filho diz antes do fim. Ele toca seu rosto, a consola como pode, num átimo de tempo, o filho quer dizer tanto, não diz, pensa, a dor é tão grande, forte, impede um sorriso mentiroso, dói, é o que ele pensa. Seus olhos fecharão em um momento, mas antes os olhões da mãe que fica é o que vê. O filho parte, Maria fica, segurando-o no colo como um bebê fosse. Um longo suspiro do menino. Maria nada pensa, nada faz. Protege o homem que se foi e partir sempre foi o destino desse homem.

Maria sofre apenas isso porque somente sofrer coube a ela.

 

 

PS: Meu jeito de dizer obrigado a um contador de histórias que morreu esse ano e me faz uma falta danada…

 

Contos

Meu primeiro cadáver

Não lembro de conhecer a morte antes de meus treze anos. Assunto que hoje domino, conheço, discurso e vivo, morrer para mim quando criança era algo distante, que não entendia ou não fazia sentido algum. Foi com o fim de meu avô que tomei contato pela primeira vez com a única certeza dessa vida. O ano de 1988 foi daqueles que guardo com carinho, nem sei bem a razão disso, mas quando volto à essa época, sorrio ou pelo menos não me entristeço. No entanto, foi nesse ano que meu avô Joaquim morreu. Não me veja como alguém insensível afinal há pouco falei que fora um período bacana, sem maiores percalços. “Mas seu avô morreu!”  Eu sei, tente entender.

Não lembro os detalhes de como aconteceu. Recordo que o velho Joaquim teve um derrame e ficou com o lado esquerdo do corpo (ou direito?) paralisado. Tinha pouco mais de 60 anos, fumava pacas e não era das companhias mais agradáveis. Cuidar dele, às vezes ou quase sempre, era um tormento. Por não conseguir se mexer direito e por depender de todos o tempo todo, o velho usava aquilo que sempre fizera muito bem: xingava, xingava e xingava. Ele morava com a mulher numa casinha nos fundos da minha. Por isso mesmo e por eu ser o mais velho dos três irmãos, cabia a mim cuidar do velhinho sempre que fosse necessário. Levar ao banheiro, tomar um sol, pegar água, ler um jornal, uma vez quase tive que dar banho, mas fui salvo por pouco.

Desde sempre, eu tivera dificuldades com relacionamentos. Sem amigos, distante dos irmãos e primos, nada de pai e pouco de conversa com a mãe. Fato, então, notar que eu e meu avô éramos nada mais do que conhecidos. Nunca houvera uma palavra doce dele pra mim e, em contrapartida, eu também não ajudara muito para que fosse diferente. Enfim, dois estranhos e conviver com estranhos e rir dissimuladamente passou a ser a tônica da minha vida. Eu, um muro imenso no meio e o resto do mundo. Talvez, culpa minha, como de todo resto. Mas então meu avô foi internado pela última vez e morreu.

Não posso dizer que fiquei chocado. Até fui treinar naquela tarde enquanto o corpo dele estava no hospital. Na verdade, Joaquim fora um fardo no final e mente quem diz que não estava cansado. Sua morte foi um descanso para todos, inclusive para ele. Não lembro onde foi velado, nem com quem eu fui, mas vejo como se visse agora o momento exato da minha chegada àquele lugar. Parei por segundos na entrada da sala, que estava cheia, vi de longe o perfil do velho, meu coraçãozinho de criança desatou a bater forte. Cheguei perto do caixão e fui apresentado ao primeiro morto de minha vida.

Aquilo foi um choque de verdade. Acho que minha mãe estava ao meu lado, não sei, mas virei meu rosto e desabei um choro tão sentido e verdadeiro apoiado pelo braço que estava ao meu lado. Eu nem gostava tanto dele assim, nem sei se gostava na verdade dele, porém, o choro vinha em soluços e soluços e meu peito doeu pela primeira vez… Ficamos até a madrugada.  Na manhã seguinte, de volta à sala fria, olhava fixamente o corpo daquele homem e esperava atentamente para ver seus olhos abrirem. Eu sabia que os olhos abririam e provavelmente daquela boca suja viria um puta que pariu ou algo do gênero. Os olhos não piscaram, a boca não se mexeu e eu chorei de novo agora abandonado do lado daquele ser sem vida…

Então, as velhas entoaram uma canção que nunca prestara atenção: “Segura na mão de Deus, Segura na mão de Deus, pois ela blablablablablabla Segura na mão de Deus e vai”. Ficou tão bonita naquelas vozes. E eu secava por dentro e não sabia mais por quem chorava, se por meu avô, pelo mundo, por mim.

O caixão foi fechado, minutos depois levado para a tumba e fim.

Estava cansado como nunca e não sei a razão, no entanto, acho que minha ingenuidade se foi naquele dia, naquela madrugada, naquela noite.

Depois enterrei meu pai, enterrei meu filho, enterrei meu cachorro.

Eu fui ficando e já não chorava mais. Apenas esperava os olhos abrirem, abram olhos, olhe pra mim, me veja, levanta daí e diga que me ama, diga que não me deixará mais sozinho…

No dia da minha morte, só de sacanagem, abri meus olhos… não ficou cristo de pé em volta do caixão. Foi engraçado…

Contos

A professora

Luna era a última. Depois, antes, ao lado, ninguém. Não importa de verdade como chegamos a essa situação e nem quem foi Luna. O que nos interessa nesse breve relato é que essa jovem senhora de 48 anos era aquela que apagaria a luz, como dizia um antigo provérbio usado por nossos ancestrais. Dito, não faz sentido entender as razões de Luna, muito menos descrevê-la por dentro e por fora. O que vem a seguir é apenas a história do fim. Como Luna era a última, sob seus cuidados num grande teatro havia mais de dez mil alunos. Todos a circundavam como naquelas velhas arenas que há eras deixaram de existir. Para a mulher sozinha de tudo, havia uma mesa de madeira da velha floresta que só conhecíamos por fotos. Tinha também um quadro negro pintado de verde. Giz quebradiços. Não havia mais ninguém naquele mundo que sabia fazer o que Luna fazia. Mas os lobos sentados esperando os leões romanos não se importavam. A doce senhora olhava, rodava seus olhos intensamente de leste pra oeste e ninguém, ninguém percebia sua presença.

A professora tentou uma vez. Dois mais … e os gritos à sua direita foram gigantescos. Alguém fizera uma piada e todos comemoravam como gol em final de temporada. Luna nunca gritara, nunca perdera a calma, nunca tantas coisas. Tentou mais uma vez. Quando os portugueses invadiram… sua voz agora era sufocada pelo trins e tiques e tacs de celulares tocando ao mesmo tempo e ao mesmo tempo todos eram atendidos e as palavras se perdiam num ruído imenso. Luna suava frio agora. Ela finalmente tomara a sua decisão. Daria apenas mais uma chance, mais uma, só uma… Como podemos ver a nossa atmosfera é formada … De seu canto esquerdo da imensa sala bolas de papel que ninguém sabe de onde vieram já que árvores não existiam há décadas passaram por sua cabeça para atingir o lado rival.

Cansada, vencida. Nada mais por se fazer. Luna deixou o giz branco escorregar de sua pequena mão. Ela viu seu instrumento deslizando milésimo de segundo atrás de milésimo de segundo. O giz caiu no chão de terra batida. Um som seco, duro, ecoou pelo coliseum. Como se milagre existisse o silêncio se fez. Todos, os dez mil, olhavam atônitos aquele pedaço de giz caído no chão. Quem o atirou? De onde veio? Como pode acontecer isso? Alguém, não se sabe quem era ou onde estava, gritou: “A professora foi embora!” Outro silêncio, mas agora a resposta a ele veio num estrondoso espocar de rosnados, latidos, grunhidos, gritos. “Festa!!!!!!!!!!!!!” E todos deixaram suas carteiras, cadeiras, alguns mais afoitos arremessaram a velha mesa contra o quadro negro de cor verde. Ruídos. Ruídos. Ruídos. Liberdadeeeeeeeeeeeeeeeee.

Luna não olhou pra trás e ninguém nunca mais perguntou ou soube dela. Quando o tempo passou tempo demais, os mais velhos que a tinham conhecido, com restinho de memória que ainda havia desenharam seu rosto em paredes pela cidade perdida. Os cabelos amarelos, a boca cerrada, os olhos caídos, tristes, em silêncio… Assim Luna ficou marcada em muros e cavernas… Foi o que restou dela.

Antes, porém, a liberdade, a festa, a comemoração. Não havia mais professores para pegar nos pés dos pobres alunos. Não havia mais “encheção de saco desses velhos frustrados”. Não havia mais escola para atrapalhar. Férias eternas. Celebrações eternas.

Assim foi por semanas, talvez anos.

Porém, o tempo de felicidade extrema cobrou um preço. As máquinas pararam de funcionar. Ninguém sabia delas, ninguém as conhecia, ninguém as havia tocado. O que aquela sociedade sempre soubera é que as máquinas existiam e faziam todo o serviço. Nada mais. O que parece ter acontecido foi que num efeito cascata, dominó, enfim, uma atrás da outra, a máquina falhou, engasgou, quebrou e parou. Claro, havia manuais para consertá-las e tudo voltaria ao normal. “Como se lê isso?” “Que língua é essa?” “Como abrimos essa máquina?”

A festa cessou e a tensão se fez presente naquele mundo que não sabia ler nem sequer um simples manual.

Mais tempo, mais silêncio de objetos que não faziam mais os trabalhos dos humanos. As fábricas empoeiraram, mas a tragédia maior ainda viria. No campo, a colheita não existia. O sol cada vez mais perto queimava qualquer coisa. Não havia comida vinda direto da terra há 50 anos. E a indústria eclodira. Fome, fome, fome. Havia livros que diziam o que fazer,  que davam alternativas, que explicavam como as coisas funcionavam. Ninguém os conheceu, ninguém os procurou.

Quando o mais terrível inverno aportou o planeta, o último livro foi queimado para aquecer os ignorantes…

“Ocê, comida ?”

“Fio muito agora!”

As conversas não existiam mais.

Todos esfomeados, devastados, perdiam também as palavras…

“Huhuh”

“Huhars”

“Mrteis”

“Aiiii”

As histórias, os períodos, as frases, as palavras, as letras tudo virou pó

Ninguém mais lembrava como o fim tinha começado.

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Tê batia uma pedra sobre a outra. Alguém, um louco talvez, teria dito que desse ato o fogo emergiria. Tê bateu pedra contra pedra por horas. Se cansou, jogou-as longe, o frio gigantesco. Tê, como todos os outros, não teria o dia seguinte…

E nenhum planeta, nem a Terra, sentiu falta de Tê e dos outros.

Contos

A ÚLTIMA HISTÓRIA

Há coisas que são. Outras não. Ele era. Não tinha dúvida alguma. E graças a essa certeza, quando fez tudo o que fez, fez sem pensar duas vezes, sem arrependimentos, sem nostalgia, sem lágrimas de adeus.  Ele acordou numa manhã de sexta, depois de uma madrugada difícil de sangue, catarro e dor e decidiu que faria o que tinha que fazer. Antes de tudo, se olhou nos olhos no pequeno espelho de borda laranja. Olhou fundo nos olhos e viu tudo. Desta vez, não se assustou e sorriu seu sorriso mais honesto.

E aquela gota intermitente, persistente, aborrece. Fecho a torneira. E aquela gota intermitente, persistente, aborrece. Fecho a torneira. E aquela gota intermitente, persistente, aborrece. Fecho a torneira. E aquela gota intermitente, persistente, aborrece. Fecho a torneira. Um vulcão explode em meu quarto. A picada não dói mais. Ela alcança meu sangue, minha alma. Agora, sinto sentir.

Todos os quadros que pintou, mantidos guardados metodicamente, foram levados para o escritório. Uma análise séria de uns, descarte rápido de outros. Em alguns, um olhar sempre rabiscado de preto que atormentou quase toda a sua existência, um painel em especial cores vivas, radiantes, num cenário vazio e triste, sem vida. Coisas que só ele conseguia ver e unir: festa e tristeza numa mesma cena. Passa os dedos nos relevos, lembra das pinceladas, da sensação e sentimentos quando tudo transpôs para as telas. Recorda dos cheiros do óleo de linhaça, das tintas, do quanto macios eram os pincéis, das formas que deixavam no quadro indo e vindo em movimentos não organizados. Lembra que era feliz pintando. Era sim.

A picada não dói mais. Em segundos, ela alcança meu sangue, minha alma. Sinto um frio imenso. Acho que posso voar. Minhas asas (onde estão minhas asas?) não são necessárias. Posso voar. Meu pai, que desistiu de mim, empurra o êmbolo com prazer, seus olhos brilham. Uhnnhhhhh. A calmaria se dispersa e como num temporal sem aviso, estou confuso e assustado. Meu coração sai pela boca. Seguro ele com cuidado, não quero machucá-lo. Ele bate em minhas mãos. Fede como bosta. Engra-çado, meu coração é um monte de merda. Aperto com força e ele escorre pela minha mão

A montanha de passado no meio do escritório.  Quadros menores em cima dos maiores. Ele pensa pintar essa cena, mas logo deixa pra lá. Abre duas gavetas grandes. Dentro delas, pilhas de negativos, cromos, fotos em papel. Cor, preto e branco, suaves, discretas, românticas. Fotos de toda uma vida de câmera na mão. Olhar apurado, ultrapassado, diferente e quase sempre incompreendido, ignorado. Não há datas nelas, mas ele pode se lembrar de cada clique, cada processo, cada viagem. O cheiro do mar, do lixão, da morte, da vida. Os olhões dela. Tudo isso ali naqueles segundos de uma vida toda. Perde tempo com uma. Olha com atenção, procura o conta-fio, vê o grão, sorri de novo, mas agora é um sorriso nervoso, um sorriso de por quê? Todas as cenas empilhadas, arremessadas para cima da escultura desajeitada construída de telas.

Puxo o cobertor até o seu queixo. Ela não se mexe, esboça um sorriso. Nenhuma luz, nenhum barulho. Apenas a respiração da moça. Ela dorme em paz. Amei, amei, sim, amei. Deixo o dinheiro em cima da cômoda. O perfume dela me acompanha. É suave. Nunca mais a vi naquelas esquinas nos invernos que se passaram. As mãos naqueles cabelos. Não sei nada dela, nem seu nome. Talvez, pense em mim, quem sabe? Minha primeira paixão não foi uma mentira. Eu quero acreditar que foi real. “Strawberry fields forever”, vomita o outdoor que iluminava meu rosto infeliz, velho e cansado.

Todos os livros nas estantes. Uma passada rápida de olhos. Com fúria e força, empurra suas estantes para o chão. Todos os livros agora estatelados, judiados, amassados, jogados e perdidos no meio do escritório. Um se abre num poema. O homem o lê. Confirma com a cabeça. “Pois é”. Ainda não acabou. Dentro da pequena gaveta, uma máquina de cortar cabelos. Ele a liga. Passa o instrumento por toda a cabeça cinza e nada resta depois de alguns minutos. No chão, ao lado dos livros, fotos e quadros, os cabelos oleosos, brancos, fracos. No armário, cabides com camisas, calças, camisetas, tudo retirado com violência e pressa.

Então é assim que acaba? Um apagar de luz? Um big bang ao contrário? E nada mais seremos? Ninguém para lembrar que um dia existimos? Ninguém?

Faltavam apenas as roupas do corpo que são tiradas com paz, sem pressa, como se um ritual de purificação se iniciasse. Camisa, calça, cueca, meias. Todas no monte de vida e passado jogado no chão.

Caminha até a cozinha. Há uma caixa de fósforos em cima da pia. Ele volta ao escritório. Revê tudo aquilo, está decidido mesmo.  Acende um fósforo e o atira na pilha de coisas e histórias que contou. A fogueira logo se instala. Ele sorri o nada. “I’m free”  e diz em inglês porque acredita ser assim mais bonito de dizer. Dá as costas ao incêndio que cresce sem temor algum, como se quisesse dizer “eu agora dou as cartas”.

Sentado, as mãos cruzadas entre joelhos, a sua frente o mar e o menino chutando ondas.  Cabelo do pai/menino escorrido na testa. Entorpecido com a vida e tudo o que ela é e não será. O menino tem medo do mar, mas só quando o pai não está por perto. O menino quer voar. Posso?Vai! E o filho foi… perdido entre as ondas.

O homem abre a porta da casa. Sai por ela. A fecha. Duas voltas e um clique. Porta fechada. Vai pela rua sem querer saber de mais nada. Não olha para trás porque assim tem que ser e será e foi. Simples assim.

Da janela entreaberta, a fumaça preta quer voar, voa, voa longe, bem longe.

Contos

A tempestade

Lara sempre achou que sabia como seria o fim. E esse traria explosões, portas fechadas com violência, raiva e ódio. Lara esperava esse fim há tempos e por isso mesmo estava preparada. Claro, não imaginava, porém, que aquele momento tão orquestrado em sua mente estaria agora sim nesse exato instante se tornando real. Havia uma sala. Ela sentada numa cadeira que perfeitamente a colocava no meio da grande mesa. Outras pessoas estrategicamente se colocavam do outro lado. A olhavam com resignação e preocupação. Lara então percebeu que o fim se desenhava e mesmo pronta pra isso suas mãos gelaram e seu coração disparou quase saindo pela boca. Ninguém percebeu isso porque claro ninguém nunca percebeu nada.

“Você tem algum problema?” E essa foi a senha para tudo ter início. Chocada com a pergunta, Lara pensou responder “tenho há tempos, você nunca percebeu?”, mas estranhamente a velha moça se calou e as palavras se soltaram daquelas bocas e eram tantas e tantas coisas diziam que Lara se confundiu. “Será de mim que estão falando?” E as frases se multiplicavam, o volume aumentava e Lara não via as explosões nem as portas fechadas com violência, nem a raiva e ódio. Lara naquela cadeira imensa, no meio da sala, se apequenava e, misteriosamente, pela primeira vez talvez, não reagia, nada dizia, apenas escutava a reverberação de sons que agora a deixavam surda.

As pedras foram atiradas em sua direção, os dedos apontados para ela diziam “ela é o cão, ela é o mal, ela não presta, ela deve morrer, ela não presta”, no entanto, quando tudo isso começou Lara pequeninha quase não distinguia o som das letras, palavras, períodos. Lara se calava e agora não mais ela, Lara andava pequena demais para andar sozinha segurando as mãos de um homem mais velho. Ele segurava um pequeno balde cor de rosa e dentro as conchinhas que Lara achava feliz quando as ondas do mar partiam felizes para qualquer lugar. Lara segurava com força aquelas mãos velhas e agora sabia sim ela sabia que não poderia dar errado e que no fim ah esse fim tudo teria valido a pena ou não, mas Lara não se importava mais com isso…

“Pai, achei mais uma”

Contos

MAMÃE

Foram tantos e muitos diriam que no fundo todos foram iguais. Eu que vivo essa vida há tempos, percebo as nuances. Não são iguais. Fazia o que faço ainda hoje há cinco, seis anos quando me deparei com Bia e Luca. Bia era a filha, cinco primaveras no máximo. Luca era o pai, mais de 30, cabelos grisalhos, barba feita, um olhar cansado e triste, que poucos, ou talvez ninguém, notassem ser cansado e triste. Ambos enterravam a mãe, a esposa, e um vendaval de sentimentos  – perda, tristeza, solidão – inundava aquela sala pequena de velório.

Eu, espectador de sempre, via Bia sentada na cadeira ao lado do caixão. Bia se levantava, sentava de novo, ficava de pé, mas em nenhum momento tirava os olhos da mãe. Luca estava ao lado da menina e assim foi o tempo todo. Às vezes, uma lágrima escorria, em outros momentos, ele encostava a cabeça na parede e fechava os olhos. A menina, nessas horas, pulava em seu colo. Com a mãozinha, acariciava o rosto do pai, brincava de roubar o nariz. O pai sorria, sorria sincero. Assim foi. Poucos segundos um dos dois saía da sala, que se enchia conforme a madrugada partia. Nem Bia, nem Luca, deixavam a esposa, a mãe, sozinha por muito tempo.

Percebia a dificuldade de Luca receber as pessoas. De fato, era evidente, o quanto o incomodava ter que ser sociável nesse momento. Parecia que ele queria que todos fossem embora ou explodissem. A menina não. Bia recebia a todos com simpatia.

“Você veio ver minha mãe? Ela tá ali, tá bonita, mas não faz barulho não, senão ela acorda! Deixa mamãe dormir quietinha!”

Poucos antes do sol aparecer, Luca aconchegava Bia, que finalmente tirava um soninho. Coisa rápida, vinte minutos. Quando a menina acordou, ainda deitada no colo do pai, ela o encarou. Estava séria, como não estivera até aquele momento. Luca estranhou, sua menina sempre acordava disposta.

“Sonho ruim?”

“A mamãe falou comigo!”

“Que bom, Bia!”

“Ela mandou eu cuidar de você, não deixar você de barba grande, não deixar você parar de correr, pediu também para você dormir no meu quarto porque eu tenho medo do escuro, né?”

“Hum, Bia, sua mãe não mandaria eu dormir no seu quarto (risos)”

“Verdade, papai. Ela falou que você pode dormir lá enquanto eu tiver cinco anos. Porque quando eu fizer seis não terei mais medo de nada!’

“O pai dorme contigo…”

Bia continuou encarando o pai que perdeu o olhar em alguma coisa que ele não sabia dizer o que era, quem sabe, o futuro.

“A mamãe não tá dormindo né?”

“Não…”

“Pai, eu não tenho medo só do escuro.”

“Eu sei… eu cuido de você”

A conversa silenciou. Bia saiu correndo. “Vou ver o cemitério!” e foi. Luca ficou. Quando se viu de fato sozinho, foi até o caixão. Passou a mão pelos cabelos da moça, “roubou o nariz”, sorriu. Disse algo baixinho. E se deixou levar pela dor que doía tanto tanto tanto que nem eu pude evitar sofrer junto. Luca sozinho chorava a vida que partia.

Quando Bia voltou, toda excitada, contando suas aventuras em meio a tumbas e gatos gigantes e esqueletos falantes, o velório estava no fim. Alguém puxou uma oração, que a menina fazia questão de acompanhar. O pai não, ele não acreditava em deus. Amém. Vão fechar o caixão e Bia não entende. Ela se aperta no pescoço do pai, sem tirar os olhos da mãe. O que se passou, então, me deixou marcas.

“Pai, acorda a mamãe! Ela também tem medo do escuro. Não deixa ela no escuro. Pai, a mãe não vai acordar? Mamãe, vai embora não! Mãe… fica!”

E aí a menininha não disse mais nada. Luca a apertou mais ainda no seu colo. Beijou sua testa.

“Vamos, Bia, a mamãe precisa descansar!”

A sala ficou vazia em alguns minutos. O céu estava azul. Era um belo dia, sim, um belo dia.

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DÉJÀ VU

Ato I

Um coquetel. Uma mistura das mais variadas químicas existentes no submundo circulava pelo seu sangue. Isso não o matava, ainda. Porém, seus movimentos e a razão se perdiam a cada segundo entre algo que se encontra no caminho que separa o inferno do purgatório. “Que dia difícil”, ele pensava. Um instante foi suficiente para recordar sua festa de casamento e o quanto estava feliz. Sua mulher era linda. É linda. E ele ali, com uma puta que provavelmente o roubaria no final de tudo. Júlio César Guedes era gerente de contas de uma agência de publicidade famosa. Tinha muito dinheiro. Era muito bom no que fazia. Com 48 anos, os cabelos já não existiam e uma barriga do tipo lua cheia formava um biótipo comum, sem graça. Sua conta bancária, no entanto, bancava aquilo que queria. Casado, três filhas, católico (ia à missa todo domingo). Sexo casual como o dessa tarde (quase noite) com quem quer que desperte seus desejos. Ele tinha dinheiro. Ele podia tudo.

Júlio nunca vira aquela garota antes. Era nova no pedaço. Rodou duas vezes com o carro pela região antes de parar. Parou. Linda. Uma puta linda e Júlio entendia de putas. Nunca tinha visto uma tão bela, tão jeitosa, tão cheia de vida. Era pequena (não chegava a 1,60). A saia curta mostrava coxas firmes, gostosas de apertar e morder. O decote escondia e mostrava ao mesmo tempo seios não grandes, nem pequenos. Perfeitos. Na barriguinha, um piercing de um símbolo que ele conhecia. Não sabia seu nome. Loira. São Paulo enfrentava seu pior inverno em 100 anos. No termômetro da esquina, o negativo era constante. Ele podia ver que ela estava arrepiada, com frio. Biquinhos durinhos. Exposta como uma carne no açougue. Júlio estava excitado. Júlio tivera um dia complicado no trabalho. “Dar uma rapidinha” (todas as últimas que ele “tinha dado”, nos últimos tempos, não tinham sido demoradas, convenhamos) e ir para o aconchego do lar no qual a mulher linda e as filhas maravilhosas o esperavam. Final de dia.

O carro para ao lado da menina. “Será que tem mais de 18?” Ele abre a porta. “Tá frio demais menina. Entra aí”. Ela entra. Não diz nada. A saia curta expõe a calcinha de algodão, branquinha. Júlio enlouquece. Quer comer ela de qualquer jeito. O cheiro. Hum.

“Quanto?”

“15, o boquete!”,  “90, tudo!”

“Carinha você hein? É de ouro?”, a gargalhada de Júlio ecoa pelo dia cinzento. Foi a sua última.

Num hotel barato de bairro esquecido no centro da Capital, Júlio não sente mais movimento algum em seu corpo. Seus olhos se movimentam com rapidez. Ele já se mijou três vezes. Está em pânico, mas não há mais nada para se fazer. A menina linda agora sem roupa passeia ao seu lado. Aquele corpo gordo de homem escroto só espera o fim. Júlio tem consciência disso. Pensa na família, nos seus pecados. Não há mais saída. No quarto fedido, só se ouve a sua respiração cada vez mais acelerada. A mulher se transfigura. Não é mais pura e indefesa. Ela mudou. Sua cara de anjo traz junto um quê diabólico. Mas e daí?

Ele vê o piercing na barriguinha da moça.

Depois, uma estocada no peito e o sangue de verdade jorra. Doeu, mas Júlio não sentiu. Outra e mais outra e mais outra.

Júlio respira com dificuldade…. até que não respira mais.

Um clichê de filme noir.

Devotada, ela tatua nas costas do infeliz mais um recado. O canivete não tem mais corte. Serve, porém. Ela admira sua obra e sorri. Está em paz mais uma vez.

“Com carinho pra você, papai!”

Ato II

A sopa quente na caneca alivia o frio da minha alma. O cheiro é bom, a sopa é rala. Tudo bem. Não posso exigir mais de quem não tem obrigação de fazer o que faz. São Paulo mudou muito nos últimos anos. E isso não significa nada. Zumbis como eu proliferam em cada esquina. Pobreza, violência, solidão. Inverno terrível. Impensável há alguns anos. Não importa o meu nome e o que eu fiz antes. Um dia desisti de tudo, deixei a porta bater atrás de mim e caí do precipício. Eu fui alguém. Fui.

A primeira coisa que se aprende quando se vai para as ruas é que o fedor no seu corpo é necessário. Ele espanta todo o resto. Espanta todo mundo. Espanta seu passado, seus erros, seus sonhos. Logo você se acostuma a isso. A barba. O cabelo. O corpo. Tudo muda. Se contorce, explode dentro de  si. O que vislumbra, então, é uma imagem desagradável que os outros fingem não existir. Esmolas aqui, migalhas ali. Um cobertor velho acolá. E ando, ando, ando, até me cansar e cair exausto em alguma esquina para dormir. O barulho do trânsito não ouço mais. Somos um só. Faço parte da paisagem e isso também não quer dizer coisa alguma.

Sou um nada em lugar nenhum…

As prostitutas daquela rua no centro sofrem com a temperatura baixa desse inverno maluco. Algumas improvisam um casaco, mas roupa demais significa cliente de menos. Os escrotos querem ver pelinhos arrepiados. Faz uns dois meses, aquela menina aparece no mesmo lugar. Me chamou a atenção desde o início. Ela era diferente das outras. Tinha um ar indefeso, casto até. Não mostrava na cara o frio que sentia. Era turrona e cabeça dura. Isso dava para perceber de longe. Claro, se alguém quisesse perceber algo nela além de seu corpo. Era linda. Fazia tempo que não sentia aqui dentro algo como agora.

A expectativa…

O importado passa uma vez. Uma segunda vez. Para. Sempre acontece desse jeito. Hoje, ela me olhou antes de entrar no carro do lobo mau. Me olhou e sorriu. Não entendi. Não havia mais ninguém naquele beco que transformaraem casa. Erasó eu e Deus. Ela não iria sorrir para Deus.

A neblina chega e me cubro como posso. Não estou com fome. Mais um dia e mais um dia. Há tempos ninguém notava minha existência. Ela notou.

Acendo uma pedra para não pensar. Viajo. Há cores agora. Estou em paz.

Ato III

O celular não dá sossego. Toca insistentemente, mas ele não atende. A noitada solitária de vodka e cocaína tinha detonado ele mais uma vez. O frio ajuda no ato de se esconder do mundo. Nunca um inverno tão rigoroso aportaraem São Paulo. Tudocinza. Tudo triste. Araújo está comemorando 20 anos de polícia. Estereótipo. Capitão de uma Força Tarefa especial, corrupto (claro), hipócrita (óbvio), racista, divorciado. Passado repleto de pecados que deixariam envergonhados criminosos de primeiro nível. Araújo é um homem comum, apesar disso. Alcoólatra não assumido. Usuário ocasional de drogas das ruas… em todos os sentidos. Quando entrou para a polícia, Araújo acreditava no sistema. Logo viu que o sistema não era o que pensava numa “faxina” que a PM fez numa favela da periferia. Doze mortos, três desaparecidos. Nenhum fichado, mas e daí? Araújo caiu na real e cresceu na carreira. Era um bem sucedido policial. Não era bonito, nem tinha charme. Por isso, não era requisitado pelas câmeras de TV quando necessário. Araújo não se importava com isso. A barriga só incomodava na hora de correr. No entanto, ele já não corria mais. Há tempos, deixara de correr. Pecados não faltavam no curriculum de Araújo.

Clichê de um filme noir proibido.

“Capitão, capitão, está me ouvindo?”

“Fala, porra!”

“Mais um corpo no centro. Outro homem de meia idade. Bem sucedido. Carro importado no estacionamento”

“Tá!”

“E capitão… mais uma mensagem foi talhada no corpo da vítima!”

“Sei!”

“Capitão, estamos esperando o senhor aqui!”

“Não enche. Eu sei o que tenho que fazer”

Tumtumtumtum.

Araújo sabia o que fazer. O quarto corpo em três meses. Prostitutas matando clientes ou vice-versa não era novidade nessa nova São Paulo velha. O que incomodava é que essa puta estava matando gente graúda. A imprensa vai cair matando. A primeira coisa que chamou a atenção de Araújo quando a primeira vítima foi encontrada foi um cheiro suave. Ele não era bom em reconhecer cheiros, mas aquele era diferente. Uma puta não usaria aquele perfume. Tinha estilo. Uma puta de esquina não tem estilo, pensava Araújo. Outros dois corpos, nada roubado, quatro, cinco estocadas no peito, a mensagem nas costas, o importado na rua. Mas tudo isso se perdia quando Araújo respirava fundo na cena do crime. O odor quase puro o dominava.

Um quarto corpo.

“Capitão, o nome da vítima é Júlio César Guedes. Publicitário, casado e blablablabla…”

Araújo não ligava para a ficha do safado. Ele fecha os olhos. O sangue já não pinga mais na poça ao lado da cama. As luzes dos carros da polícia piscando lá fora dão um charme especial quando refletem nas paredes do quarto. Ele fecha os olhos. Respira fundo. O cheiro… suave…. o absorve…. Araújo está em paz.

Contos

A família

Não tenha pena de mim. Sou totalmente responsável pelos meus atos e fiz o que fiz porque quis. Estava enfastiada, irritada, sem saída. Então abri a caixa e deixei saírem todos os demônios. Confesso apenas que me assustei por um ou dois segundos quando percebi que eu era a irmã do meu irmão. Eu era como ele.

15 anos antes…

Quando nasci, Igor já tinha seis anos. Claro que não lembro disso, mas a primeira coisa que ele fez ao me ver foi arremessar um molho de chaves que acertaram a cara de minha avó (para a minha sorte e azar dela). Ouvi minha mãe contando essa história para uma amiga. Eu crescia e sempre ao lado de Igor, as ofensas e agressões se avolumavam. Não havia por parte dele – e disso me recordo – nenhum desejo de cuidar de mim, de ser bom pra mim. Quando fiz cinco, ganhei uma boneca linda. Ela vinha com duas roupas. Eu até chorei de emoção rasgando a embalagem cor de rosa com o nome da loja. Igor não estava em casa naquele dia. Teve a boneca, bolo e brigadeiro e um monte de amiguinhos da escola. Usava um vestidinho azul escuro e uma tiara que combinava com os sapatos. Todos foram embora, meu irmão chegou. Ele não sabia de meu aniversário e estranhou aquele ar de festa que preenchia cada sombrio canto de nossa casa. Eu havia esquecido a porta de meu quarto aberta e ficou fácil para o Igor. Ele viu os presentes, o vestido novo e a minha primeira boneca – toda linda. Demorei para perceber que Igor estava em casa. Só quando ouvi o estridente barulho de alegria de sua risada demoníaca que corri para o meu quarto. Lá, numa pequena fogueira, derretia minha boneca, queimava meu vestido, tudo. A fumaça preta tomava conta do lugar e Igor ria, ria, ria.

Paralisada de medo (seria tristeza?) via todo o meu mundinho se desfazer. E não entendia minha culpa nisso tudo.

Aos 15, papai e mamãe saíram de casa para espairecer. Me deixaram sozinha com Igor. Eu ainda sonsa, pouco entendia das razões que levavam meu irmão tanto me odiar, me castigar, me punir. Antes de entrar no carro, mamãe gritou da calçada “seu remédio tá em cima da pia, Igor!” Meu irmão não estava resfriado. Tranquei a porta de meu quarto, deitei na cama e lá fiquei horas, dormi e fui capturada dos braços de Morpheus graças aos gritos terríveis que vinham do quintal. Meu coração acelerado de um jeito que nunca ficara e aquele grito, aquele grito, meu deus, aquele grito. Mesmo aflita corri para o quintal, o dia já tinha ido e o quintal não era dos lugares mais convidativos da minha casa durante a noite. Mesmo assim, fui… fui sabendo que algo meu irmão fizera e que isso marcaria de vez toda a nossa família.

Encostado no muro, Igor fazia desenhos abstratos usando o sangue da filha da vizinha como tinta. Tanto sangue. Ela tinha só sete anos. Igor jogou pra longe o pequeno corpo, olhou pra mim com tanta fúria “agora é tua vez, sua vadia!” Corri, mas não consegui sair do lugar. Um soco me acertou o olho direito, outro meu estômago e desabei feliz sabendo que não estaria acordada dali a um segundo porque o pior ainda aconteceria. E aconteceu. Meus pais voltaram no dia seguinte, encontraram o corpo da filha da vizinha, eu ainda deitada de bruços exausta, sem forças no quintal, toda quebrada em todos os sentidos. Igor na sala banhado em vermelho sangue assistia futebol na sala, indignado com o “juiz filho da puta que só rouba contra meu time!”

Um grave transtorno de personalidade, disseram sobre ele.

Minha volta para casa depois de anos coincidiu com uma breve saída do manicômio para Igor. Ele passaria os feriados de fim de ano em casa. Parecia outro quando entrou pela porta de casa. Abraçou papai, beijou mamãe que chorava emocionada. Ao se aproximar de mim, disse aos prantos “não era eu, me perdoe, me perdoe, agora estou curado!” me abraçou.

Eu nada falei e apenas esperei as luzes de toda casa serem desligadas. Estava na cozinha olhando o vazio da minha vida e o quanto dela (a minha vida) havia restado depois de 15 anos vivendo com Igor e pais que não me protegeram. Percebi que a minha vida não existia mais e que eu era apenas um resto, um nada, um fantasma daquela menina que queria ser médica. Eu agora não era nada e abri a caixa e deixei saírem todos os demônios.

Gaveta da pia aberta. Uma faca grande, afiada. O fim desenhado na minha cabeça. Subi as escadas, a porta do quarto de Igor encostada. Ando devagar porque já tive pressa e sei todos os passos e caminhos que darei e seguirei. Sorrio. Sento ao lado do corpo quente do meu irmão. “Igor, acorda!” Ele abre os olhos, sonolento, não entende direito e só percebe que o fim é agora quando leva a segunda estocada no peito. Enfio a faca fundo, sinto o colchão. Trabalho na perfeição daquele momento durante uma hora. Nada do pouco de humano de Igor resta. Agora ele sabe no que me transformou.

A porta do quarto de meus pais está fechada. “Por quê não?”

Mamãe se afogou no próprio sangue. Papai nem abriu os olhos.

 

“Polícia”

“Eu terminei a história do meu jeito. Eles estão lá em cima… “

“Moça, não entendi…”

 

Quando a PM chegou, eu estava sentada no sofá da sala olhando meu reflexo na TV… pensava nas ondas do mar batendo nos meus pés e do quanto eu gostava dessa sensação …

Contos

Epifania

No instante em que eu fechei meus olhos, soube tudo. Toda a história brotou no meu cérebro. Tudo, tudinho. O começo. A direção. A conclusão. As palavras se sucediam e cada parágrafo se formava na minha cabeça, cada frase era degustada. Eu sabia qual o tempo, qual o ponto da virada, sabia das mortes, sabia da solidão que aquela moça pequena de olhos grandes viveria, entendia perfeitamente porque o antagonista jamais seria o protagonista. Via os cenários, via os figurinos, sabia tudo de suas cores, sons e cheiros.

Aquela história que nasceu como mágica no instante em que meus olhos fecharam (se eu acreditasse em magia ou coisa que valha) teria quatro atos. Em cada um deles, o homem seria criança, seria homem, seria velho, seria nada. Esse homem (e eu o conhecia tão bem, tão por inteiro e fazia apenas segundos que ele invadira minha mente) não queria mais nada. A cada final de ato, a cada final de capítulo, ele procuraria uma saída. Eu já sabia como resolver cada um dos seus dilemas. Eu poderia ver como a sua vida se desenrolaria e como essa afetaria e seria afetada por um mundo de melancolia que nascia e morria a todo instante.

Havia um filho desse homem e se houvesse luz nessas palavras todas estariam voltadas para o garotinho que não viveria mais do que dez anos. Mas sempre que o moleque aparecesse na história, o homem saberia que tudo teria valido a pena.

Eu já via, então, o romance pronto, delineado, com capa dura e desenho pintado na aquarela, desenho que nada significaria para os outros, mas que faria sentido sim não importa para quem. Sentia em meu delírio o sucesso das vendas, dos editores me querendo, dos cineastas me querendo, do Jô Soares me querendo. Meu best-seller.  Via  as edições traduzidas para o russo, francês, tupi. As longas e excitantes viagens de promoção. Perguntas inteligentes de repórteres que haviam lido de fato o livro e não o resumo. No instante em que eu fechei meus olhos, soube como seria o futuro

Mas… abri os olhos, o despertador marcava quatro da manhã e nada havia restado de lembrança daquela história que mudaria o mundo.

Nada.