Contos

A professora

Luna era a última. Depois, antes, ao lado, ninguém. Não importa de verdade como chegamos a essa situação e nem quem foi Luna. O que nos interessa nesse breve relato é que essa jovem senhora de 48 anos era aquela que apagaria a luz, como dizia um antigo provérbio usado por nossos ancestrais. Dito, não faz sentido entender as razões de Luna, muito menos descrevê-la por dentro e por fora. O que vem a seguir é apenas a história do fim. Como Luna era a última, sob seus cuidados num grande teatro havia mais de dez mil alunos. Todos a circundavam como naquelas velhas arenas que há eras deixaram de existir. Para a mulher sozinha de tudo, havia uma mesa de madeira da velha floresta que só conhecíamos por fotos. Tinha também um quadro negro pintado de verde. Giz quebradiços. Não havia mais ninguém naquele mundo que sabia fazer o que Luna fazia. Mas os lobos sentados esperando os leões romanos não se importavam. A doce senhora olhava, rodava seus olhos intensamente de leste pra oeste e ninguém, ninguém percebia sua presença.

A professora tentou uma vez. Dois mais … e os gritos à sua direita foram gigantescos. Alguém fizera uma piada e todos comemoravam como gol em final de temporada. Luna nunca gritara, nunca perdera a calma, nunca tantas coisas. Tentou mais uma vez. Quando os portugueses invadiram… sua voz agora era sufocada pelo trins e tiques e tacs de celulares tocando ao mesmo tempo e ao mesmo tempo todos eram atendidos e as palavras se perdiam num ruído imenso. Luna suava frio agora. Ela finalmente tomara a sua decisão. Daria apenas mais uma chance, mais uma, só uma… Como podemos ver a nossa atmosfera é formada … De seu canto esquerdo da imensa sala bolas de papel que ninguém sabe de onde vieram já que árvores não existiam há décadas passaram por sua cabeça para atingir o lado rival.

Cansada, vencida. Nada mais por se fazer. Luna deixou o giz branco escorregar de sua pequena mão. Ela viu seu instrumento deslizando milésimo de segundo atrás de milésimo de segundo. O giz caiu no chão de terra batida. Um som seco, duro, ecoou pelo coliseum. Como se milagre existisse o silêncio se fez. Todos, os dez mil, olhavam atônitos aquele pedaço de giz caído no chão. Quem o atirou? De onde veio? Como pode acontecer isso? Alguém, não se sabe quem era ou onde estava, gritou: “A professora foi embora!” Outro silêncio, mas agora a resposta a ele veio num estrondoso espocar de rosnados, latidos, grunhidos, gritos. “Festa!!!!!!!!!!!!!” E todos deixaram suas carteiras, cadeiras, alguns mais afoitos arremessaram a velha mesa contra o quadro negro de cor verde. Ruídos. Ruídos. Ruídos. Liberdadeeeeeeeeeeeeeeeee.

Luna não olhou pra trás e ninguém nunca mais perguntou ou soube dela. Quando o tempo passou tempo demais, os mais velhos que a tinham conhecido, com restinho de memória que ainda havia desenharam seu rosto em paredes pela cidade perdida. Os cabelos amarelos, a boca cerrada, os olhos caídos, tristes, em silêncio… Assim Luna ficou marcada em muros e cavernas… Foi o que restou dela.

Antes, porém, a liberdade, a festa, a comemoração. Não havia mais professores para pegar nos pés dos pobres alunos. Não havia mais “encheção de saco desses velhos frustrados”. Não havia mais escola para atrapalhar. Férias eternas. Celebrações eternas.

Assim foi por semanas, talvez anos.

Porém, o tempo de felicidade extrema cobrou um preço. As máquinas pararam de funcionar. Ninguém sabia delas, ninguém as conhecia, ninguém as havia tocado. O que aquela sociedade sempre soubera é que as máquinas existiam e faziam todo o serviço. Nada mais. O que parece ter acontecido foi que num efeito cascata, dominó, enfim, uma atrás da outra, a máquina falhou, engasgou, quebrou e parou. Claro, havia manuais para consertá-las e tudo voltaria ao normal. “Como se lê isso?” “Que língua é essa?” “Como abrimos essa máquina?”

A festa cessou e a tensão se fez presente naquele mundo que não sabia ler nem sequer um simples manual.

Mais tempo, mais silêncio de objetos que não faziam mais os trabalhos dos humanos. As fábricas empoeiraram, mas a tragédia maior ainda viria. No campo, a colheita não existia. O sol cada vez mais perto queimava qualquer coisa. Não havia comida vinda direto da terra há 50 anos. E a indústria eclodira. Fome, fome, fome. Havia livros que diziam o que fazer,  que davam alternativas, que explicavam como as coisas funcionavam. Ninguém os conheceu, ninguém os procurou.

Quando o mais terrível inverno aportou o planeta, o último livro foi queimado para aquecer os ignorantes…

“Ocê, comida ?”

“Fio muito agora!”

As conversas não existiam mais.

Todos esfomeados, devastados, perdiam também as palavras…

“Huhuh”

“Huhars”

“Mrteis”

“Aiiii”

As histórias, os períodos, as frases, as palavras, as letras tudo virou pó

Ninguém mais lembrava como o fim tinha começado.

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Tê batia uma pedra sobre a outra. Alguém, um louco talvez, teria dito que desse ato o fogo emergiria. Tê bateu pedra contra pedra por horas. Se cansou, jogou-as longe, o frio gigantesco. Tê, como todos os outros, não teria o dia seguinte…

E nenhum planeta, nem a Terra, sentiu falta de Tê e dos outros.

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