Contos

A ÚLTIMA HISTÓRIA

Há coisas que são. Outras não. Ele era. Não tinha dúvida alguma. E graças a essa certeza, quando fez tudo o que fez, fez sem pensar duas vezes, sem arrependimentos, sem nostalgia, sem lágrimas de adeus.  Ele acordou numa manhã de sexta, depois de uma madrugada difícil de sangue, catarro e dor e decidiu que faria o que tinha que fazer. Antes de tudo, se olhou nos olhos no pequeno espelho de borda laranja. Olhou fundo nos olhos e viu tudo. Desta vez, não se assustou e sorriu seu sorriso mais honesto.

E aquela gota intermitente, persistente, aborrece. Fecho a torneira. E aquela gota intermitente, persistente, aborrece. Fecho a torneira. E aquela gota intermitente, persistente, aborrece. Fecho a torneira. E aquela gota intermitente, persistente, aborrece. Fecho a torneira. Um vulcão explode em meu quarto. A picada não dói mais. Ela alcança meu sangue, minha alma. Agora, sinto sentir.

Todos os quadros que pintou, mantidos guardados metodicamente, foram levados para o escritório. Uma análise séria de uns, descarte rápido de outros. Em alguns, um olhar sempre rabiscado de preto que atormentou quase toda a sua existência, um painel em especial cores vivas, radiantes, num cenário vazio e triste, sem vida. Coisas que só ele conseguia ver e unir: festa e tristeza numa mesma cena. Passa os dedos nos relevos, lembra das pinceladas, da sensação e sentimentos quando tudo transpôs para as telas. Recorda dos cheiros do óleo de linhaça, das tintas, do quanto macios eram os pincéis, das formas que deixavam no quadro indo e vindo em movimentos não organizados. Lembra que era feliz pintando. Era sim.

A picada não dói mais. Em segundos, ela alcança meu sangue, minha alma. Sinto um frio imenso. Acho que posso voar. Minhas asas (onde estão minhas asas?) não são necessárias. Posso voar. Meu pai, que desistiu de mim, empurra o êmbolo com prazer, seus olhos brilham. Uhnnhhhhh. A calmaria se dispersa e como num temporal sem aviso, estou confuso e assustado. Meu coração sai pela boca. Seguro ele com cuidado, não quero machucá-lo. Ele bate em minhas mãos. Fede como bosta. Engra-çado, meu coração é um monte de merda. Aperto com força e ele escorre pela minha mão

A montanha de passado no meio do escritório.  Quadros menores em cima dos maiores. Ele pensa pintar essa cena, mas logo deixa pra lá. Abre duas gavetas grandes. Dentro delas, pilhas de negativos, cromos, fotos em papel. Cor, preto e branco, suaves, discretas, românticas. Fotos de toda uma vida de câmera na mão. Olhar apurado, ultrapassado, diferente e quase sempre incompreendido, ignorado. Não há datas nelas, mas ele pode se lembrar de cada clique, cada processo, cada viagem. O cheiro do mar, do lixão, da morte, da vida. Os olhões dela. Tudo isso ali naqueles segundos de uma vida toda. Perde tempo com uma. Olha com atenção, procura o conta-fio, vê o grão, sorri de novo, mas agora é um sorriso nervoso, um sorriso de por quê? Todas as cenas empilhadas, arremessadas para cima da escultura desajeitada construída de telas.

Puxo o cobertor até o seu queixo. Ela não se mexe, esboça um sorriso. Nenhuma luz, nenhum barulho. Apenas a respiração da moça. Ela dorme em paz. Amei, amei, sim, amei. Deixo o dinheiro em cima da cômoda. O perfume dela me acompanha. É suave. Nunca mais a vi naquelas esquinas nos invernos que se passaram. As mãos naqueles cabelos. Não sei nada dela, nem seu nome. Talvez, pense em mim, quem sabe? Minha primeira paixão não foi uma mentira. Eu quero acreditar que foi real. “Strawberry fields forever”, vomita o outdoor que iluminava meu rosto infeliz, velho e cansado.

Todos os livros nas estantes. Uma passada rápida de olhos. Com fúria e força, empurra suas estantes para o chão. Todos os livros agora estatelados, judiados, amassados, jogados e perdidos no meio do escritório. Um se abre num poema. O homem o lê. Confirma com a cabeça. “Pois é”. Ainda não acabou. Dentro da pequena gaveta, uma máquina de cortar cabelos. Ele a liga. Passa o instrumento por toda a cabeça cinza e nada resta depois de alguns minutos. No chão, ao lado dos livros, fotos e quadros, os cabelos oleosos, brancos, fracos. No armário, cabides com camisas, calças, camisetas, tudo retirado com violência e pressa.

Então é assim que acaba? Um apagar de luz? Um big bang ao contrário? E nada mais seremos? Ninguém para lembrar que um dia existimos? Ninguém?

Faltavam apenas as roupas do corpo que são tiradas com paz, sem pressa, como se um ritual de purificação se iniciasse. Camisa, calça, cueca, meias. Todas no monte de vida e passado jogado no chão.

Caminha até a cozinha. Há uma caixa de fósforos em cima da pia. Ele volta ao escritório. Revê tudo aquilo, está decidido mesmo.  Acende um fósforo e o atira na pilha de coisas e histórias que contou. A fogueira logo se instala. Ele sorri o nada. “I’m free”  e diz em inglês porque acredita ser assim mais bonito de dizer. Dá as costas ao incêndio que cresce sem temor algum, como se quisesse dizer “eu agora dou as cartas”.

Sentado, as mãos cruzadas entre joelhos, a sua frente o mar e o menino chutando ondas.  Cabelo do pai/menino escorrido na testa. Entorpecido com a vida e tudo o que ela é e não será. O menino tem medo do mar, mas só quando o pai não está por perto. O menino quer voar. Posso?Vai! E o filho foi… perdido entre as ondas.

O homem abre a porta da casa. Sai por ela. A fecha. Duas voltas e um clique. Porta fechada. Vai pela rua sem querer saber de mais nada. Não olha para trás porque assim tem que ser e será e foi. Simples assim.

Da janela entreaberta, a fumaça preta quer voar, voa, voa longe, bem longe.

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