Foram tantos e muitos diriam que no fundo todos foram iguais. Eu que vivo essa vida há tempos, percebo as nuances. Não são iguais. Fazia o que faço ainda hoje há cinco, seis anos quando me deparei com Bia e Luca. Bia era a filha, cinco primaveras no máximo. Luca era o pai, mais de 30, cabelos grisalhos, barba feita, um olhar cansado e triste, que poucos, ou talvez ninguém, notassem ser cansado e triste. Ambos enterravam a mãe, a esposa, e um vendaval de sentimentos – perda, tristeza, solidão – inundava aquela sala pequena de velório.
Eu, espectador de sempre, via Bia sentada na cadeira ao lado do caixão. Bia se levantava, sentava de novo, ficava de pé, mas em nenhum momento tirava os olhos da mãe. Luca estava ao lado da menina e assim foi o tempo todo. Às vezes, uma lágrima escorria, em outros momentos, ele encostava a cabeça na parede e fechava os olhos. A menina, nessas horas, pulava em seu colo. Com a mãozinha, acariciava o rosto do pai, brincava de roubar o nariz. O pai sorria, sorria sincero. Assim foi. Poucos segundos um dos dois saía da sala, que se enchia conforme a madrugada partia. Nem Bia, nem Luca, deixavam a esposa, a mãe, sozinha por muito tempo.
Percebia a dificuldade de Luca receber as pessoas. De fato, era evidente, o quanto o incomodava ter que ser sociável nesse momento. Parecia que ele queria que todos fossem embora ou explodissem. A menina não. Bia recebia a todos com simpatia.
“Você veio ver minha mãe? Ela tá ali, tá bonita, mas não faz barulho não, senão ela acorda! Deixa mamãe dormir quietinha!”
Poucos antes do sol aparecer, Luca aconchegava Bia, que finalmente tirava um soninho. Coisa rápida, vinte minutos. Quando a menina acordou, ainda deitada no colo do pai, ela o encarou. Estava séria, como não estivera até aquele momento. Luca estranhou, sua menina sempre acordava disposta.
“Sonho ruim?”
“A mamãe falou comigo!”
“Que bom, Bia!”
“Ela mandou eu cuidar de você, não deixar você de barba grande, não deixar você parar de correr, pediu também para você dormir no meu quarto porque eu tenho medo do escuro, né?”
“Hum, Bia, sua mãe não mandaria eu dormir no seu quarto (risos)”
“Verdade, papai. Ela falou que você pode dormir lá enquanto eu tiver cinco anos. Porque quando eu fizer seis não terei mais medo de nada!’
“O pai dorme contigo…”
Bia continuou encarando o pai que perdeu o olhar em alguma coisa que ele não sabia dizer o que era, quem sabe, o futuro.
“A mamãe não tá dormindo né?”
“Não…”
“Pai, eu não tenho medo só do escuro.”
“Eu sei… eu cuido de você”
A conversa silenciou. Bia saiu correndo. “Vou ver o cemitério!” e foi. Luca ficou. Quando se viu de fato sozinho, foi até o caixão. Passou a mão pelos cabelos da moça, “roubou o nariz”, sorriu. Disse algo baixinho. E se deixou levar pela dor que doía tanto tanto tanto que nem eu pude evitar sofrer junto. Luca sozinho chorava a vida que partia.
Quando Bia voltou, toda excitada, contando suas aventuras em meio a tumbas e gatos gigantes e esqueletos falantes, o velório estava no fim. Alguém puxou uma oração, que a menina fazia questão de acompanhar. O pai não, ele não acreditava em deus. Amém. Vão fechar o caixão e Bia não entende. Ela se aperta no pescoço do pai, sem tirar os olhos da mãe. O que se passou, então, me deixou marcas.
“Pai, acorda a mamãe! Ela também tem medo do escuro. Não deixa ela no escuro. Pai, a mãe não vai acordar? Mamãe, vai embora não! Mãe… fica!”
E aí a menininha não disse mais nada. Luca a apertou mais ainda no seu colo. Beijou sua testa.
“Vamos, Bia, a mamãe precisa descansar!”
A sala ficou vazia em alguns minutos. O céu estava azul. Era um belo dia, sim, um belo dia.