Contos

Luka de bico

“Não sabe nada de física, literatura, gramática. Eu só gosto de educação sexual e eu odeio, Química, Química, Quimicaaaaaaaaaaaaaaaaaaa”……….

“Luka, abaixa esse volume e desce pra comer!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Você não disse que ia estudar??? Não dá para se concentrar com esse barulho todo!!!!!!!!! ”

Minha tia. Ela é legal. Histérica, mas bacana. Cuida bem de mim e se preocupa até demais. Estou com ela há uns cinco anos. Tenho 15 agora. O verão está chegando. O final de ano. O Natal. Meu aniversário. E o pior de tudo: semana das provas finais. Não agüento mais estudar e hoje é daqueles dias que não vejo a mínima necessidade de se aprender alguma coisa. Estou meio mórbida e me veio na cabeça uma piada de muito mau gosto. O molequinho pentelho chega todo feliz e pergunta para a mamãe: “Mãaaaaaaaaaaaaaaeeeeee, o que eu vou ser quando crescer???. A dona-de-casa assustada, vira para o moleque, pega ele no colo e responde: “Nada, meu filho. Você tem um tumor no cérebro”. Bom, eu não tenho um tumor no cérebro. Tenho o vírus da Aids. Enfim, dá no mesmo. Vou morrer. Meu nome é Luka (sim, com k – minha mãe era metida demais).

Esse ano inteiro foi meio maluco. Muitas coisas que me alegravam perderam a cor. Não sei, mas me afastei demais da realidade, sabe? Não consigo explicar direito como começou esse processo. Estou longe da Gil, da Karina, da Helô. Elas cresceram comigo. Estamos juntas na escola desde o maternal. Não tenho vontade de ligar pra elas. De falar com elas. Claro, não disse isso a nenhuma delas. E também não me importo de não perceberem a minha nova vida. Bom, elas só se preocupam com meninos agora. Isso está enchendo as cabecinhas das minhas amigas.

Enquanto a Cidona, professora de geografia, explicava o fenômeno da Globalização e como esse indivíduo influencia a minha vida, olhava para o que estava do outro lado da janela. Na calçada, uma moça bonita demais beijava um rapaz bonito demais. Eles estavam tão felizes, tão cheios de vida, que era impossível não sentir uma alegria profunda ao vê-los assim. No segundo seguinte, porém, me baixou uma tristeza tão grande … Algo que tem se repetido tantas vezes nas últimas semanas. Nunca fui assim, mas não controlo mais a minha razão. Preciso contar a verdade. Estou tão confusa e com tanto medo. Como vai ser depois que ele souber?

A janta está caprichada. Parece que a minha tia leu os meus pensamentos. Macarrão com atum. Eu adoro essa combinação. Não pude resistir ao pecado da gula. Repeti o prato e minha tia com um olhar tão carinhoso me fez sentir segura de novo. Minha cabeça está uma montanha-russa, digo em voz alta. “A gente vai passar por essa. Tivemos momentos ruins antes”. Minha tia histérica é sábia também. É verdade, tivemos momentos bem ruins. E olha só. Estamos eu e ela agora, juntas, chorando feito bobas, com uma panela de restos de macarrão com atum no meio do nosso silêncio.

Sempre tive muita desconfiança desse negócio de diário. Na verdade, não tenho paciência de ficar escrevendo. Não gosto. O Rafael, professor de História, me enche o saco por causa disso. Fazer o quê? Não gosto e ponto final. Mas foi fácil começar a escrever o que vai aqui dentro do meu coração. Minha alma está falando…Ohhhhhh, estou ficando brega também. Esse ano tem sido meio maluco. Falando no Rafael, parece que ele se livrou da namorada gorda. Parece mentira, mas ele era outro homem hoje na sala de aula. Sem sacanagem, foi a primeira vez na minha vida que tive interesse em prestar atenção numa aula de história. O cara detonou. Veio com umas fotos, botou uns sons indígenas, contou umas historiazinhas de fantasmas. Caramba, esses 50 minutos valeram por todo um ano de enrolação.

Queria tirar esse peso das costas como o Rafael fez. Vou dormir. Amanhã tenho prova e não estudei nada. Estou cansada. Como vai ser quando eu tiver que tomar o remédio? Queria acreditar que vou sair dessa…queria mesmo. Bom, só tive um dia ruim… A sorte muda, dizia o meu pai…Safado. Quando penso nele e no que fez com a gente. Minha tia diz que eu sou muito nova para ter tanto ódio por alguém. Não consigo evitar…

“Luka, pelo amor de Deus, vai dormir!!!!!!! Estudou pra prova?? Escovou os dentes???? Menina, você não toma jeito! Vai ser criança até quando?…”

“Para sempre”… pensei em gritar do outro lado da porta. Mas não disse nada.

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