Teórico

Tragédia rural

A modernização – fenômeno social, econômico, político e cultural do final do século XIX – tem no centro urbano seu mote principal. Apesar do Brasil ter sua população dividida historicamente entre CIDADE e CAMPO, nessa época, esse processo, que relegou antigas tradições à extinção, também se enraizou no meio rural. Levou mais tempo, é verdade, mas a modernização da sociedade burguesa mundo a fora alcançou a terra. O latifundiário conseguiu legalizar sua propriedade a partir de 1850 (Lei das terras). Que propriedades? Como conseguiu tais terras? Trabalhando sol a sol, claro, não foi. O problema é que enquanto esse novo cenário mundial englobava a figura do grande proprietário de terras, o sitiante se via excluído.

Com mão-de-obra familiar, sem apego a um local, mudando, se mesclando à realidade da região em que vive, o caipira encontrou apoio apenas em outro caipira. Essas relações vicinais mantiveram as tradições desse grupo social.  De qualquer forma, porém, não foram capazes de brecar o avanço da modernidade. Invariavelmente, suas pequenas propriedades acabavam nas mãos de latifundiários. E toca o caipira a cair no mundo. Erroneamente, essa não “permanência” alçou o caipira à condição de vagabundo, daquele impróprio para o trabalho. Imagem estilizada no famoso personagem Jeca Tatu, criado por Monteiro Lobato no início do século XX. O que se precisa dizer é que esse caipira seguia uma lógica própria que não a imposta pela “fábrica”. Seu dia não conta, segue, nasce pelo tilintar dos relógios fabris.  Seu ano não é contado pelo calendário burguês do trabalho. O caipira, como trabalhador do campo, segue a lógica da natureza e seu tempo. Nasceu o sol, hora de trabalhar. Mas, agora, trabalhar onde?

A questão da terra no Brasil não é um fenômeno recente, da era MST, por exemplo. Remonta às grandes propriedades avalizadas (sem parâmetro algum além da conta bancária) pelos governos do século XIX (e aqui cabe nova e mal fadada lei das terras de 1850, novamente). O descalabro da expulsão do homem do campo originou as lutas camponesas, a liga camponesa, entre outros movimentos – inclusive o já citado acima movimento dos sem-terra. A reforma agrária, assunto recorrente há um século pelos corredores do Congresso Nacional e nada além disso, nunca se firmou de fato como uma realidade. E o caipira assiste a isso, talvez incrédulo, partindo de um canto para outro.

Como movimento que discute a questão da posse da terra nas mãos de tão poucos, o MST se tornou alvo  da mídia burguesa. A radicalização de suas ações (acredito que necessária) afastou o apoio da classe média. Apesar da massa popular que o segue, o movimento dos sem-terra está longe da realização da utopia “de que não haverá um homem sem seu pedaço de chão para plantar”.

Nesse contexto, no qual a mecanização do campo só aumentou o desemprego, o êxodo, a migração, o latifundiário não perdeu espaço. Como não lhe faltam trabalhadores sem trabalho, paga o que bem entende. A miséria no campo não difere da miséria na cidade. E se o caipira se fecha em seu grupo, o bóia-fria, para sobreviver, desbrava o desconhecido. Pulando de cidade em cidade, o corte da cana lhe traz a sobrevivência da família. A um preço alto demais! Por 10 mil toneladas/dia esse homem se afasta de seus familiares, revive os cenários ingleses da revolução industrial no século XIX, e passa a ser um estrangeiro, um clandestino em seu núcleo de trabalho. Se não gostar, paciência, outro assume seu lugar. Sim, “as pessoas não migram porque querem”. Por um pedaço de terra, elas se põem a caminho, como lembra Hobsbawn. O problema está que não são donos de suas vontades e a realidade do mundo capitalista, que mata as tradições daqueles que foram excluídos do processo de modernização, se vê simbolizado nos calos das mãos dos trabalhadores rurais do Brasil.

Teórico

Poesia x ignorância

Durante o século XIX, teorias das mais diversas foram elaboradas com o intuito de estabelecer a supremacia da “raça” branca. O principal alvo, claro, os negros, foram apontados como inferiores, incapazes. O médico Nina Rodrigues, voz com credibilidade em seu meio social, defendia tais ideias. A eugenia justificava a escravidão e uma brutal diferenciação social. O neocolonialismo e o pretenso desejo de levar a civilização – inventada, ditada e moldada pelos europeus –  a todos os cantos do mundo se amparavam nesses conceitos. Bom, mas aí surge a turma do morro, muitos sem estudo, muitos sem perspectiva alguma de futuro. E o que fazem? O trecho de Nelson Cavaquinho selecionado para esta prova  – “quando piso em folhas secas, caídas de uma mangueira, lembro da minha escola e os poetas da minha estação primeira. Não sei quantas vezes subi o morro cantando” – aponta e invalida as teorias de Nina Rodrigues e tantos outros. “Quando piso em folhas secas…”, construção belíssima de tempo, é uma criação de um ser inferior? Não fiquemos apenas na música. A ginga negra no futebol brasileiro é sua marca registrada. Haveria pentacampeonato mundial sem negros na seleção? Seriam os negros uma “raça” degenerada? Evidente que os discursos racistas do século XIX serviram à uma classe social, a um discurso dominante. Discursos esses que não se sustentam aos primeiros acordes de um cavaquinho em qualquer morro carioca, por exemplo. A valorização da cultura (s) negra e o consequente processo que levará ao homem/mulher a ter consciência de que sim ele possui dignidade perpassa pela derrubada de mitos e preconceitos em uma sociedade como a nossa que prega o tal do “racismo cordial”. Cartola, Guinga, Nelson Cavaquinho, tantos, tantos que nunca souberam o que defendia Nina Rodrigues. No entanto, foram eles, os primeiros a provar que o médico que defendia a inferioridade de uma “raça” não tinha argumentos contra o talento e a poesia.

Teórico

Atabaque não é coisa do capeta!!!

O canto sacro é uma das formas que o homem, em diferentes tempos e culturas, encontrou para realizar uma conexão com o sagrado. O som dos atabaques nas religiões afro-brasileiras, também, cumpre esta função. Por que todos os símbolos destas religiões são associados ao demônio pelas diferentes denominações cristãs?

É importante partir essa discussão do conceito de que as religiões monoteístas possuem um elevado  grau de intolerância quanto ao que é diferente (quem define quem ou o que é diferente?), ao que não lhe pertence. Como representantes, no mundo ocidental, das classes dominantes, as religiões cristãs empregam esse poder no estrangulamento do que surge em outra direção, que aponta uma nova perspectiva. Essa é a definição por si só do que é ou quem é herege, aquele que escolhe, segundo o cristianismo institucionalizado. Neste sentido, é fundamental para essas religiões se esforçarem na criação de uma imagem negativa de qualquer culto afro. Por serem herdeiros dos escravos, seus remanescentes nas religiões africanas são perseguidos justamente por tentarem resistir com suas tradições, mesmo que isso os levem ao sincretismo – marca tão singular na cultura brasileira. As religiões afro são difíceis de serem aceitas pela “massa” justamente porque não oferecem a dicotomia bem e mal. Para aqueles que a amaldiçoam, é esse o ponto de maior relação com o “capeta”. Para um cristão, é muito claro o que é o bem (pelo menos naquilo que lhe faz sentido) e o que é mal. Associar as crenças africanas ao mal é mais um ponto no discurso de segmentação social. O negro se recolhe ao seu papel insignificante segundo os mandamentos daqueles que detém o poder. Foi assim antes, o é agora. O atabaque não é um símbolo do diabo. Ele evoca uma tradição, uma fé (ou várias), deuses os mais variados que erram e acertam. O atabaque como símbolo é humano. Impensável para um culto monoteísta, que visualiza o humano de cima para baixo, numa escala hierárquica, social…

 

PS: Sou um herege, então? Hum…

Teórico

História e memória

Arrisco iniciar meu texto, retomando a última fala do andróide de Blade Runner. Nela, ele exprime toda sua dor com a morte iminente do conhecimento que adquiriu em seus poucos anos de vida, “momentos que se perderão como lágrimas da chuva”. Ali o que viu, o que sentiu, o que sonhou, o que desejou, tudo desaparece com sua morte. Ao pensar a proposta dessa atividade sobre o ensino de História, Memória e Neoliberalismo, para desenvolver esse texto, me veio à mente toda a “sabedoria” perdida do andróide e a importância que esse dava ao fato. Uma lição ao homem? Sim, Hobsbawn se aprofundou no tema ao mencionar a “destruição do passado”. Interessante casamento proposto pelo neoliberalismo vigente no mundo.

Num cenário desses, o ensino de História surge como alternativa de duas visões/propostas antagônicas. Uma delas (a pior em minha opinião) é manter o status quo. Aceitar o aluno como cliente, se adaptar à lógica do mercado e “passar o ponto” na lousa como se nada tivesse acontecido. Concluindo-se, portanto, que a educação é um bem de consumo. A outra proposta coloca o professor de História na ponta de uma lança que mira o fim dessa “sonolência social”. A contestação ao cenário neoliberal, o “reacender da memória”, o extermínio dessa ideia que se professa de “presente contínuo” (Hobsbawn novamente) são tarefas desse profissional que é sim um “estranho” ao mundo que se configura num processo de individualismo cada vez mais bem orquestrado. Afinal, não podemos esquecer que a educação, para a elite, não é uma necessidade.

Nesse contexto, acredito que cabe a nós, professores de História, percebermos que escolha entre duas vertentes tão opostas será feita. E isso refletirá no ensino e na aprendizagem do aluno. Não sou dado à radicalização de discursos, mas estamos vivenciando uma crise generalizada tão grave que surge no ar a sensação de que não há crise alguma. Essa construção ideológica proposta pelo capitalismo lança a sociedade como refém (e me faz perguntar: será que essa sociedade não quer ser refém disso?). O passado, então, é lançado na sarjeta  e o imediatismo, o efêmero, ganham status.

Sua pergunta faz eco: “Diante disso tudo, você ainda quer ser professor?” O cenário sombrio faz refugar aqueles que se veem perdidos entre os antagonismos mostrados nos parágrafos anteriores. Capitular ou propor uma ruptura? Trabalhar numa ruptura? Sim, talvez eu seja ingênuo. Talvez o andróide seja de fato mais humano que o humano, mas creio sim que o neoliberalismo não seja um fardo para se carrregar como se nada estivéssemos carregando. Apontar suas falhas, indicar saídas, destrinchar o “manto sagrado” do capitalismo são tarefas obrigatórias da rotina de um professor que busca o velho e bom “caminho das pedras”. Refletir sobre esse curso mostrou que é possível alterar o processo de “deformidade” social que estamos sentindo na pele.

A verdade em que vivemos não é a única e nem a “verdade”. O ensino de História e seu engajamento numa proposta de projeto social (como coloca Fontana) esta presente como alternativa a essa verdade.