Contos

Tudo de novo

O cara brincava com meu mamilo esquerdo quando se deu conta de algo estranho. Um caroço, foi o que ele disse. Não lembro seu nome. Isso pouco importa também. O telefone tocou naquele instante, botei o mané para correr e nem me preocupei. O que os homens entendem de caroços no seio? No dia seguinte, dia aliás que não deveria ter deixado a cama, quando cheguei do trabalho, me sentia mais do que cansada. Não tinha força alguma. Estava sem fome, joguei a bolsa no sofá, nenhuma mensagem na secretária, fui para o chuveiro. Lembrei da noite anterior e do comentário do rapaz. Em frente ao espelho, toquei meu seio esquerdo. De fato, havia algo ali que não deveria existir e que eu nunca tinha dado conta. Seu tamanho me assustou.

 

Isso foi há dez anos. Eu tinha 22, estava perdida, com raiva do mundo, extremamente sozinha. Sem perspectiva alguma. Na gavetinha da mesa ao lado da minha cama, deixava para o dia da grande coragem comprimidos para nunca mais acordar. Estava verdadeiramente cansada. Bebia muito, dava muito, vivia a 300 por hora. Nem sei direito o por quê daquilo. Era inquieta mesmo. Triste não, só estava cansada. Quando encontrei o caroço, não liguei para minha mãe. Não liguei para ninguém. Fui ao médico sem marcar consulta. Cheguei lá e esperei.

 

Era evidente que eu tinha câncer. Não me foi surpresa quando o gatinho do doutor disse, escolhendo as boas palavras. “Quimio, operação, enfim, tratamentos que já deveríamos ter iniciado meses atrás”, falou o bonitinho. Meu coração não acelerou, não me emocionei, não tive medo. O que me surpreendeu é que naquele instante eu tive uma vontade louca de viver. Sabe, partir pra porrada contra essa doença maldita. Quis algo como há tempos não queria. Ia vencer o meu câncer, falei e sorri um sorriso honesto.

 

Marcamos a operação. Antes, iniciei a quimioterapia. Meu entusiasmo nesse embate contra algo maior do que eu se foi logo depois da primeira sessão. Peguei um táxi para casa e lá mesmo vomitei minha alma e algo mais. E uma dor por dentro me arrancava do chão, nem sei descrever direito. Só sei que me sentia fatiada, engolida, os remédios me detonavam. Diarreia avassaladora. Se já não comia antes, agora então nada. Anemia feroz. E olha que tinha sido apenas a primeira. Me internei sozinha. Minha cirurgia seria das radicais. Não havia como salvar minha mama. O médico gatinho fez o que tinha que fazer. Acordei horas depois no quarto. A TV estava ligada no Chaves. Consegui até rir.

 

A quimioterapia continuou. O inferno continuou e acho que até piorou. Sei lá. Ficava mal por quatro, cinco dias. Me sentia mais detonada do que nunca. Sem peito e agora sem cabelos também. Eu sabia que isso ia acontecer, mas rolou um certo choque quando saí do banho e na toalha tufos e mais tufos. Chorei ali de verdade, sentida como nunca. Naquela noite, liguei pra casa. Falei oi pra minha mãe. Não contei sobre a doença, não falei sobre nada. Só a ouvia falar de suas coisas e como a vida estava difícil. Pois é, mãe, viver é perigoso. Tchau. Você vem para o aniversário do seu pai, né? Vou. Não fui.

 

Como é do ser humano se adaptar, comigo não foi diferente. Dois anos de tratamento entre idas e vindas. Me acostumei a toda aquela desgraça. Usei perucas, usei nada. Sorria quando queria. Chorava quando dava. Ia vivendo, assim, como se podia. Até que os médicos (eram três nesse dia e nenhum bonito) me garantiram que eu estava curada. Lembro que me senti vazia. Coisa estranha. Aquela doença por tanto tempo esteve ali comigo, contando minhas horas, me amando, me odiando, sendo parte de mim, que quando disseram que ela tinha partido, só senti o vazio. Me levantei. Andei alguns metros, parei no boteco e bebi uma garrafa de vinho. Meu primeiro porre em meses.

 

Minha mãe morreu três anos depois.

 

Meu pai meses depois dela.

 

Fui ao enterro dela. Dele não. Acho que ninguém me reconheceu. Parti como cheguei, sem dizer palavra alguma.

 

Mudei de emprego três vezes. Consegui um trabalho numa revista bacana há dois anos. Voltei a fotografar. Até me disseram que aqueles olhos tristes do primeiro dia tinham sumido. De verdade, eu era mais mulher ali. Achava que a tempestade cruel havia passado. Até reconstruí meu seio. Fiquei gostosa. Os homens voltaram a me desejar. Não fui pra cama com mais ninguém desde a doença, mas estava finalmenteem paz. Ovazio do câncer tinha sido preenchido por tantas coisinhas bobas, livros, cinema, minhas fotos, um bebê lindo da vizinha que eu sempre cuidava quando ela saía.

 

Não pensava no amanhã, mas navegava em águas tranqüilas, desconhecidas águas tranqüilas. Viajei à África para um trabalho. Fiquei um mês por lá num campo de refugiados. Quando voltei havia uma mensagem na secretária. “Oi Sofia, sou eu. Então, você ta no outro lado do mundo, e me deixou aqui me sentindo tão sozinho. Preciso falar contigo. Quero falar muito falar com você. Liga assim que chegar. Saudade demais. Beijo”. Eu parecia uma adolescente boba. Pulei, gritei, estava ali vivendo FELICIDADE. Tinha 32 anos. O pior ficou para trás.

 

No dia seguinte, acordei tarde. Estava de folga, não ia para a revista. Quando me levantei da cama, uma tontura gigante me atirou ao chão. Tudo girava. Senti um gosto ruim na garganta e pelo meu nariz escorria sangue em alta velocidade. Me engasgava com ele. Deu tempo apenas de ligar pra emergência e pedir socorro. Apaguei. Mas mesmo apagada, sentia um cansaço imenso. Algo tão forte que desejei não seguir adiante. Apaguei. O gosto de sangue ainda estava ali quando acordei no hospital. Eu até sabia para onde me encaminhava novamente. Não chorei e esperei o inferno surgir na minha frente.

 

Exames, exames, exames. Nenhum médico bonito. Flores do pessoal da revista. Flávio do lado da cama, beijando minha mão. “Estou com você”, ele disse e achei tão sincero. “Quero ver isso depois que vomitar em você três dias seguidos”, só pensei.

 

Estava cansada demais, distante. O doutor careca, com cara de bobão, me visitou no dia 20 de janeiro. Trazia os resultados. Eu e ele apenas no quarto. Havia uma cópia barata de um quadro famoso de não sei quem na parede. Eram cores bonitas…

 

“Sofia, …”

 

Olhei para o quadro colorido, para a cara de bobão do médico, para a janela.

 

Olhei para dentro de mim.

 

Sorri assim um sorriso sincero. Sorri, apenas…

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