Contos

O sótão

Tinha que decidir um monte de coisas. Era tanto pra minha cabeça e ninguém percebia de fato que eu não queria decidir nada. Último ano na escola. Vestibular chegando. Boletim parecendo um matadouro em dia de festa de gente. Tanto pra pensar. Não gritava, não pedia um tempo, não fugia. Seguia a correnteza. Não era feliz, mas isso também não importava. Quem sabe de fato o que é ser feliz? Eu poderia estar enlouquecendo naquela época, vai saber. Sétima aula na quinta-feira, véspera de feriado. A professora falava, falava, falava, falava e aí num segundo parou de falar. Tudo meio que tomou uma outra cor, um outro nível de consciência. Então, eu vi.

Onde os olhos deveriam ser verdes, azuis, castanhos, pretos, o vermelho. Destacavam-se na escuridão. Podia vê-los perfeitamente e sabia que aqueles olhos vermelhos me olhavam de volta. Não tive medo. Há tempos desconheço isso. Uma das placas do teto da minha sala havia se soltado. Ninguém deu muita importância pra isso. Ninguém reparou nada. Mas aqueles olhos vermelhos estavam ali em cima, me diziam algo, diziam sim, não sei o que diziam. Vislumbro a fileira do outro lado. As carteiras a minha frente. A professora que ainda falava, falava, falava. Nenhum deles percebera a menina no sótão nem que eu havia a descoberto.

O sinal toca. A manada sai em disparada. A professora ainda falava, mas o som de sua voz já ia distante. Eu ficara para trás. A menina escondida no breu.

 

“Oi”

Demorou um pouco… e

“Oi”

“Você existe?”

Escuto os passos acima de mim.

Ela se ajoelha, um rostinho pálido, doente, aparece no vão da placa perdida.

“É, parece que você existe…”

“Você quer ouvir minha história?”

Ela pergunta de um jeito tão delicado, tão intenso, que meu peito sente um corte profundo, um aperto tão grande, que meu deus, não sei…

Olhos vermelhos perdem o brilho, um rastro de sangue passeia do canto da sua boca até o queixo. Sangue antigo, sofrido, de outros tempos. O olhar é tão triste… mas é a menina quem diz antes.

“Teu olhar é tão triste…”

Esboço um sorriso falso ou talvez o mais verdadeiro que eu tivesse pra ocasião. A loira faz o mesmo. Cabelos compridos, escorridos, básico se é assim que se fala de cabelos de meninas. Aí, ela fala coisas, tantas coisas e ouço atentamente, me esqueço do tempo, de ir embora. A menina loira perdida no sótão conta a sua história. Eu perdido em qualquer lugar só quero estar ali e ali fico.

 

O sinal toca e a dormência na minha perna faz eu gemer alto. Todos riem. A professora não. Depois não reclama se repetir de ano, ela sempre diz isso. Vermelho de vergonha, guardo as coisas na mochila, parto sem dizer nada.

 

Fazia tempo que não passava nessa rua. Sabia que o prédio seria demolido, não tinha certeza da data. Era noite já bem noite. Paro o carro na esquina e dois minutos a pé estou em frente ao meu antigo colégio. Avisto lá no segundo andar a janela em que encostava a minha cabeça tão vazia de sonhos. Me distraio um segundo com a buzina do ônibus e quando volto meus olhos pra janela, velhos tristes conhecidos olhos vermelhos me encaram. Como antes, eles ainda dizem coisas. Eu encaro a menina e me pergunto em qual momento tudo desandou. “Quando eu peguei o caminho errado?” Ela, de longe, parece querer responder, mas sua boca não se mexe. Aceno um tchau bobo, respiro fundo, sigo para minha vida e quando olho para trás, dos olhos vermelhos que me seguem da janela apenas uma tristeza tão triste que ainda não inventaram um nome pra ela.

 

As gotinhas caem uma atrás da outra. Dois canos machucam meu nariz com o ar que não consigo pescar sozinho. Uma linha sobe e desce no monitor. Fim da linha e tenho certeza que nunca imaginei que seria diferente. O remédio alivia a dor, não alivia a dor da alma que ainda dói.  Mas tudo bem. Está acabando…

 

“Oi”

Demoro pra responder, penso não dizer nada, digo…

“Oi”

Os olhos vermelhos sorriem.

“Vai ser diferente da próxima vez”

 

O sinal toca. Estridente. Me assusta, quase caio da carteira, o caderno desaba no chão.   Todos riem. A professora também. Me atropelo, saio correndo, tudo jogado na mochila. Não olho pra trás, as risadas ainda persistem e por tudo isso, apenas isso, não percebo a menina loira que não ri, mas que está ali, estará ali no mesmo lugar, sentada em sua carteira, seus cadernos cor-de-rosa, como sempre estivera, só que agora vai ser diferente.

 

 

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