Parte I
Nunca entendi direito como a vida funcionava. Em vários momentos, lutei contra ela, contra as coisas, bati demais e apanhei muito mais, me perdi, uma overdose aos 24, sanatório aos 30 até que me calei, parei de falar alto, bater as portas e procurar desesperadamente por sentir algo que não fosse ódio ou raiva. Aí, Bia apareceu, pagou minha fiança, me trancou num quarto, fez prometer que nunca mais me furaria, me mataria, cheiraria… Não disse nada, mas ela viu em meus olhos que não havia mais força para o combate. Me rendia, de joelhos, clássico, um clichê. Então Bia me lavou, me amou, cortou meus cabelos, limpou todas as minhas feridas, engravidou e morreu. E ficamos eu e o menino.
Queria tanto aquele menino que o luto se esvaía a cada sorriso bobo ou a cada brincadeira no parquinho. Por tanto tempo entorpecido e aquele menino me fazia tomar banho, virar um professorzinho de periferia, jogar fora toda a tequila e vodka (o vinho não joguei não, ninguém é de ferro). O mundo estava mais estranho do que sempre fora, a intolerância era a ordem, os falsos profetas clamavam por seus deuses, os carros engoliam as pessoas, a polícia decidia quem vivia quem morria, o bandido decidia quem vivia e quem morria, os jornais diziam que tudo estava bem. Demorei pra abrir os olhos para esse mundo afinal meu mundo era um garotinho órfão de mãe e isso me bastava.
Numa tarde de domingo, depois de um temporal e uma soneca imensa no sofá da sala, ouvi barulhos no meu quarto. O menino brincando, claro. Fui de mansinho para não assustá-lo. A porta estava apenas encostada, pela fresta podia vê-lo. Não posso dizer que não me surpreendi. Na verdade, nunca havia pensando nessas coisas, nas possibilidades, desejos, carências de meu filho. Eu era tão tosco, às vezes. Sei lá. O menino vestido como a mãe, passava um batom na boca, imitava uns trejeitos de uma moça da novela. Fiquei ali vendo meu filho travestido. Não posso dizer que fiquei chocado. O moleque tinha sete anos, deixa ele brincar. Ponto final.
Alguns anos depois, a diretora da escola me chamou. “Puta que pariu, vou ser demitido!” Meu coração pulava no peito porque precisava daquele emprego, talvez não porque gostasse, mas o dinheiro era fundamental pra cuidar do meu menino. Fazia conjecturas, criava desculpas, imaginava o pior cenário quando ao abrir a porta da sala de reuniões dou de cara com meu filho, todo machucado, olho roxo, nariz escorrendo sangue, chorando em silêncio. “Ele atacou um colega!”, disse a inspetora. Caralho, se meu filho estava detonado daquele jeito imagina o outro então, “atacou um colega?”. Quando a inspetora terminou a frase imbecil, o menino levantou a cabeça e o olhar que tinha naquele rostinho… ah aquele olhar… aquilo foi como uma estaca no meu peito…”Nunca mais meu filho terá aquele olhar na cara!”. Deixei a besta falando sozinha, peguei o menino, fomos pra casa. Em silêncio.
Tirei sua roupa. Lavei seu corpo. Não curei a dor, incapaz eu de cuidar do meu filho. “Pai, o Miguel estava pelado no vestiário, sem querer, eu juro, fiquei olhando, eu só fiquei olhando, aí aconteceu algo comigo, os meninos viram… e…” te espancaram covardemente … respondi pra mim mesmo. Enxuguei o corpinho machucado do meu moleque, mas sabia que tudo estava apenas começando. Eu precisava voltar a ser aquele homem que não levava desaforo pra casa, aquele animal precisava voltar, sim, era o jeito de proteger minha cria.
Mudamos de escola. Os roxos sumiram do corpo, mas a alma do menino estava incomodada, ele não se encaixava, ele queria voar livre, não se esconder, queria encontrar um sentido, um caminho. Tudo isso passava pela cabecinha do meu filho. Eu apenas deixava “todas as portas abertas” pra que ele soubesse que seu pai estaria ali pra qualquer coisa e que se fosse necessário o animal que seu pai fora um dia, voltaria pra protegê-lo. Aquele mundo não aceitaria aquilo que meu menino queria… Eu estava pronto pra briga…
“Pai”, ele tinha 14 quando decidiu falar comigo de homem pra homem. Eu sabia o que vinha a seguir, não me importava, eu o amava tanto, tanto, tanto. “Pai, eu gosto de meninos…” Olhei pra ele com tanta coisa (amor?) que não sei descrever, mais do que preocupado com aquilo que via na TV e que se referia também ao meu filho, senti um orgulho tão grande dele ter confiado naquele podre pai… Eu o abracei, não precisava dizer nada. Ele sabia que o pai estava ali… Dois anos depois, na noite de Natal, o menino chegou em casa com um moço mais ou menos de sua idade. Eu terminara de fazer uma lasanha esquisita (?) pra janta natalina, estava tenso, sei lá o que pensava quando abri a porta. “Pai, esse é o Luca… meu ami… meu namorado…” Luca olhou com um carinho imenso para o meu filho. Meu coração se acalmou, meu menino encontrara o amor de sua vida, a tal da paz que tanto procurei me abraçava, me aceitava…